sexta-feira, 20 de dezembro de 2019

O inapto


Nasci para ser livre,
Fosse como fosse.

Livre livre!
Incapaz de ter
Partido ou time,
Geneticamente
Inapto para ovelha.

E isto em tudo.

Nada me define,
Ninguém,
Nenhuma Ideologia
Me representa.
Ideias, sexo,
Gostos, crença,
Tudo é meu
De nascença.

Admirei João ou Maria
Mas jamais consegui
Sinceramente
Ser devoto, ou crente
(Como o talento
Ou a Santidade
De algum deles
Me pedia.)

Para mim, religião
Sempre foi pessoal
E, portanto, a minha,
Imanente:
Caminhar com estes pés
Por rumos inconscientes,
Sem gurus, papas,
Rabinos, imãs,
Arrenegado consciente.

Sempre desconfiei
Da Verdade em maiúscula
E não consigo
Ouvir teorias
Sem achar-lhes
Um furo no pano,
Ou ponto malfeito.

E por isto, 
Ao ser livre,
Cometi bobagens,
Ao confundir
Sê-lo com agir 
Descuidado.
Só depois aprendi,
Aos tombos,
Que ser livre
Exige optar bem.

Não creias, porém,
Que sou descrente.
Ao contrário,
Creio no que creio,
Profundamente,
Mas isento
E insubmisso.

E não me faltaram
Jamais conselhos
Em sonhos, 
A ajuda de algum
Anjo, 
Que ao saber
Como sou,
Não desistiu
De dizer:
Vai, ô livre,
Por onde
E como
Bem queiras,
Mas
Vai lúcido.
Se tropeças, 
Levanta
Sempre.

Isto, eu segui.



domingo, 24 de novembro de 2019

Outono, Portugal

Árvores vestidas de dourado,

Folhas bordô
Dos véus bordados
Libertam-se a voar
Pintando de rosado
O chão verde e camurça,
Ou criam barquinhos coloridos
Que vão por riachos cristalinos
Navegando rumo ao mar.

Outono em tons suaves,
De finos matizes:
Veludos róseos e grises,
Cobrem a nave estelar.
E no altar, expõem-se
Frutos multicores,
Crias da terra
Em seus amores,
A se doar.




quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Como um dia qualquer na Covilhã


Paulo despertou de sonhos confusos: a casa da infância, os pais, amigos sumidos nestes 70 anos. Lívia, a amada, pedindo para dançar e ele negando. Sonhos.
Lívia se fora. Ele ficou. Sozinho, dor nos joelhos, nas ancas, visão turva, audição falha, pele manchada, com nervuras, velha casca de sobreiro. Ao levantar-se, lembrou que era Natal. Dia qualquer duma vida oca.  Barbeando-se, tonteou, mareado. E o inesperado aconteceu.
Surgiu-lhe um anjo.  
(Expliquemos. Não era anjo de Igreja, ou Super-Anjo Americano. Nem palpável era, ou alado. Era a voz que Paulo reconhecia de menino, murmurando debilmente entre os ruídos da máquina de pensar. Nos silêncios, Paulo ligava rádio para que outro som ocultasse a voz que agora ouvia claramente).
O Anjo disse
- Sim, sou eu.
E convidou
-Veste-te. Vamos à rua, que é Natal.
Paulo obedeceu.

Já na Alameda Europa, Paulo viu a Serra da Estrela nevada, como se da vez primeira.
Disse-lhe o Anjo
-Tens razão ao dizer que o Natal é um dia comum.  Como em qualquer dia, o sol cruzará o horizonte, reinaugurando a vida, e das fontes do Covão d’Ametade brotarão água e poesia. Sem dar-te conta.
Paulo pensou: estou louco! Não havendo como fugir ao Anjo, respirava com dificuldade.
- Perco o fôlego! O coração dispara! É minha morte, Anjo?
-Isto não interessa, respondeu o visitante.

Devagar, o sopro da respiração voltou-lhe como voltara no dia primordial em que, aos gritos, Paulo nasceu. Apercebeu-se, igualmente, do coração a bater ritmado dentro dele e para ele, como uma prenda diária. Sentou-se num banco, olhando as montanhas, como o menino que fora, a recitar poemas.
Prosseguiu o Anjo
-Pela Alameda Europa, mil vezes respirarás sem dar-te conta e, sem dar-te conta serás mais sábio e mais profundo. Na Avenida Anil verás a Terra transformar-se a cada giro que ela gira desde que o mundo é mundo. Sem dar-se conta, na Gardunha ressurgirão flores que, em silêncio, darão frutos.
O Anjo, ou Paulo, continuou
- Crianças darão seus primeiros passos nas casas do Pelourinho e amores produzirão beijos, abraços e (por que não?) alguns espinhos.

A Serra transmutara-se em cenário 3-D expressionista: pontos brilhantes verdes, róseos e, em tons pastéis, as pedras e as casas. No alto, um azul celeste a fundir-se com violetas. Pelas calçadas, velhos conhecidos seguiam sua marcha urbana com netos, cães, sonhos, ocultos anjos e demônios.
Paulo, comovido, balbuciou
- Sem que nos demos conta, triunfará a vida, a Silenciosa, a Desapercebida, gerando mais vida em mutação, com átomos que não vemos e cordas e dimensões que nós desconhecemos, em plena Covilhã.

O Anjo então concluiu
- Nisto repousa o mistério deste dia de Natal, como de qualquer outro: os mais preciosos bens que em ti vivem, vivem por ti sem que nem te dês conta, de tão perenes, humildes e comuns.

Paulo, assustado, perguntou ainda ao Anjo
- Morrerei, então, agora?

O visitante respondeu-lhe com ar maroto, sorrindo, ao ir-se:
- “Ó Paulo, deixa de ser trágico! Desfruta Hoje, o paraíso”.




domingo, 10 de novembro de 2019

Os "home-ideia"




“Eu não sô um home, eu sô uma ideia”...
frase de um conhecido mitômano brasileiro



Cuidado com aqueles que se dizem “uma ideia”.

Ou estão loucos, ou são mentirosos compulsivos. Sociopatas.

Hitler foi “uma ideia”,  Lenin, Stalin e Mao também o foram. Desfeita a sua Humanidade, eles revelaram a frieza capaz de aprisionar e aniquilar povos, multidões, para provar o poder de sua Ideologia. Seres-ideia, foram capazes de destruir países e suas economias nos processos da "renovação revolucionária da realidade para a construção do Novo Mundo, do Novo Homem", a partir de um modelo seu e de sua gangue.

Mesmo Jesus, grandiosamente humano, foi convertido em uma Ideia, o Logos grego, e entronizado como o “Ungido”, o Senhor, a Terceira Pessoa da Trindade, de modo a servir como modelo na tomada de poder pelo Catolicismo sobre o mundo pagão. Tornou-se um deus encarnado visando saciar a idolatria milenar dos povos. O plano teve êxito, criando-se uma estrutura monstruosa que foi a sombra do Homem que a gerou, o seu oposto em discurso e ação. É surpreendente que no cerne dos textos deixados por seus seguidores, permanece viva a presença de um ser humano imensamente sábio e honesto que percebeu a necessidade essencial do amor. Quando confrontado com a questão do sentido da Verdade, Jesus teve a honestidade de se calar. O ser humano Jesus é maior que o estrago causado pela divinização, devido à sua evidente grandeza e consciente humildade.

Nietzsche, um filósofo moralista, tomado pelo fervor da crítica ao mundo cristão, buscou retomar outra ótica do Humano, a do mítico herói grego que se torna imortal e divino por suas ações e demonstrações de poder no mundo, para além de qualquer humildade, além mesmo do Bem e do Mal. Quem sabe perceber Nietzsche na sua sua essência pode distinguir em sua crítica que o filósofo buscava destruir uma sociedade hipócrita, dominada pela figura do Cristo descarnado, eternamente crucificado, cujo poder advinha da Culpa e da promessa de Castigo. Nietzsche criticava o mundo da morte do Humano, onde o prazer, a realização e a liberdade pessoais tornaram-se impossíveis. O que Nietzsche postulou em seu poético Assim Falava Zaratustra, é a ascensão do Indivíduo, do Homem livre, acima do ser massificado pelo medo. 
Pois Nietzsche foi usado como Ideia por aqueles que planejavam a destruição do Indivíduo através do Terror, os ideólogos dos totalitarismos que empestaram os séculos XIX e XX.  A figura de seu Super-Homem foi confundida com a do “Grande Líder” dos movimentos revolucionários.  Grupos humanos e mesmo povos inteiros foram dizimados pelas ordens de um Grande-Líder, um Ser-Idéia, que pairava acima da Humanidade comum e justificava o Crime e a destruição de países e de economias.

Vivemos um período em que estas ideologias sofreram descrédito devido aos seus óbvios e lamentáveis resultados. Pelo menos nos países chamados livres.

Mas, na América Latina, temos os que se auto-intitulam "Ideia" e, por isto, se crêem acima da Lei, da Justiça e dos deveres comuns a todos os cidadãos. E ficamos pasmos: há quem os apoie, mesmo após a destruição sócio-econômica de seus países e a implantação de ditaduras.

No caso latino-americano, os "seres-Ideia" são reconhecidos vagabundos, analfabetos-funcionais, alcoólatras, milicos golpistas, adolescentes barbudos em busca de aventura, de prédios para queimar, ou de algum “homem do povo” ou des-viado para matar. Ou ainda, simplesmente bandidos comuns desejosos de ter um bom barco, acesso a jatinhos, um cartão corporativo, o domínio sobre bancos nacionais de financiamento para negociar com seus amigos poderosos e riquíssimos, uma boa mansão, um sítio onde passar o fim de semana, pois “ninguém é de ferro”. 

Cada pessoa, cada povo traça seus caminhos com base no que é em essência. 

Alguns que, lamentavelmente, ainda necessitam de um “Grande Líder” têm a “Ideia” a ser seguida que merecem.

Eca!


sábado, 5 de outubro de 2019

Petúnia neoplatônica


Uma petúnia
É o que és,
Brilho fugaz e aparência
De perfume e pétalas,
Breve forma a esvair-se
Desde broto,

Mas para os olhos videntes
És mais que
Uma flor apenas,
És a lábil expressão da
Flor em essência,
És a florescência do Ideal
De que procedes,
A Substância em flor.
Já o sabia Platão:

Flor em carne e espírito,
Alma dos seres
Sempre nascentes
E moribundos.
Genoma dos avós,
E de antes destes,
Em perpétua mutação.

Revelação
De um mistério
De DNAs e poemas,

Mais que isto,
De luz e som
E de uma Ideia,
Talvez.

És o que és,
Forma filha
Do Universo
Que ao fazer-te
Se refez.

Eu te retrato,
Petúnia genética,
Neoplatônica.
Mística
Flor das estrelas.