quarta-feira, 26 de junho de 2013

processo


Não sou direita, esquerda, ou centro:
Meu partido
É criar fora o que está dentro

É ser igual a ti, sendo diverso

E respeitar-te sendo respeitado.

A justa via não tem cor, classe, ou lado,
Nem gênero definido:

A justa via é feita por um justo
E o seu caminho percorrido.

Sem palavras, no silêncio,
Os sonhos vão parindo a vida:

É uma mulher criando,
A prole,
Outra mulher amando
A prole alheia,

É o homem simples
A aprimorar sua aldeia:

E ao reformar a aldeia,

Refundar
O Universo.

sábado, 15 de junho de 2013

ideais e realidade


Voltam os velhos sonhos a andar nas ruas,
Sonho velho, andarilho em calças rotas,
A invocar a algum deus antigo com poesias,
Celebrando primevos cultos de passagem.

(O semimorto Odin reclama de seus lobos.
Jeová, o moribundo, delira a ditar regras.
Alá esbraveja e sai pedindo a guerra santa,
Entre outros deuses, nos jardins do Inferno.)

O mais caduco dos bordões é então entoado:
Mudar o mundo! refazer a história humana!
Trocar de alma,  refundir-se na inocência!...

(Os tarimbados deuses comentam com enfado:
-Esta balbúrdia é só mais uma asneira insana.
O que lhes falta é esforço, estudo e competência.)


terça-feira, 11 de junho de 2013

Elegância na fé


Que a fé seja elegante:

Sendo imenso sol,
Estrela brilhante,
Que se mostre
Quase invisível
Para um olhar distante,

Pois assim se borda o céu.

Que o ideal
Seja aroma de flor,
Não cheiro
De barato
aerossol.

Que a fé
Seja tão íntima
Como o amor:
Tu e teu Sentido,
Ou teu Deus.

Toda gritaria,
Publicidade,
Ostentação,
De uma fé
Transforma-a
Em uma indecência,
Teste de tolerância
Para a alheia
Paciência.

Veste tua fé
Para ti mesmo
Com discrição
E elegância.




domingo, 9 de junho de 2013

O devir



Como pode algo transformar-se em seu oposto?
A libertadora idéia transmutar-se em prisão?
A maior alegria desembocar no desgosto,
O mais rico prazer vir de alguma aflição?

O perfeito ideal corromper-se em ideologia
Que aprisiona o humano no que ele tem de pior?
Dos nossos enganos surge a sabedoria,
E no humus do erro nos floresce o melhor

E o que hoje é o melhor amanhã pode tornar-se
Simulacro do que foi, descartável disfarce,
Fantasma de si mesmo sem qualquer valor.

A vida é fluxo imenso e nosso olhar não a abarca,
Neste oceano revolto somos a minúscula barca
Que consegue ir adiante porque o mar é amor.




quarta-feira, 5 de junho de 2013

Poema (mais ou menos) livre


Declaro-me incapaz
De ser o que não sou!

Sou isto o que sei:
Inevitáveis erros e
Acertos espontâneos.
Os esforços desde piá,
Extremadas alegrias e
Tristezas esquecidas:
O que foi e o que será.

Sou estes sonhos de outras vidas,
Umas memórias perdidas.
Sou o que não sei:
Misterioso centro
A me brotar.

Sou eu, dos gestos toscos,
Das manhãs de cara feia,
Das preguiças e das manhas,
Das pinturas e poesias,
Amando aos animais de rua,
E mesmo às pedras a amar.

Sou a obra deste meu destino
E talvez, talvez apenas, o autor.
Sou adulto e o eterno menino,
O que duvida e o que nega,
O que crê com alma cega
E que depois desperta.

Sou o companheiro
Da hora incerta
E o que não busca,

O solitário.

segunda-feira, 3 de junho de 2013

A Filha Sagrada do Taxista


Vivendo e aprendendo, ou melhor, ouvindo e aprendendo.
Hoje, o taxista que me transportou ao trabalho foi um homem negro, elegante e simpático. Nos cumprimentamos e o taxi começou a me levar. Eu estava relaxado e feliz por alguns dias de descanso em Montevidéu, e nem sentia o cansaço de algumas horas de viagem, sem direito a um intervalo em casa...ao batente, direto. Resolvi lembrar das coisas que aconteceram nestes dias, dos passeios, do balé no teatro Sodre. Ia metabolizar as memórias da viagem, mas o companheiro taxista tinha outras ideias: queria conversar.
-O senhor é médico, não?
-Sim.
-Esta garotada é complicada, me disse.
-É? -respondi sem entender o que vinha por aí.
-Minha filha, de 20 anos...guria trabalhadora...estava empregada há algum tempo numa empresa, mas resolveu sair e montar seu próprio negócio...
-Que ótimo...
-Ótimo, sim...mas a guria, por ter negócio próprio, resolveu que poderia gastar em viagem, roupas de grife, carro novo...resultado: se endividou. Agora, estou tentando achar uma forma de financiar a dívida.
-Bah! que chato. E no fim, tu és quem vai ter que resolver o problema.
-É isto...
Creio que, sentindo-se apoiado pelo bom ouvinte, ele foi fundo no drama que o incomodava:
-É que ela está toda envolvida com esta Igreja Universal, doutor...
Senti que a coisa era pesada. Eu, como detesto esta igreja, tive que controlar a língua. Fui diplomático:
-Ah! ela tem uma fé...
-É bem mais complicado que isto...ela conheceu o marido num culto, se apaixonaram, casaram. E ela ficou fanática, porque ele é fanático.
-Hmmm...
-E estes pastores são uns picaretas, sabe? O negócio todo envolve picaretagem.
Eu fiquei surpreso com a colocação do taxista:
-Como assim?
-Sim...picaretagem.  Minha filha comprou o carro numa revenda de carros de segunda mão que pertence aos pastores. São carros que foram doados por fiéis da igreja.  Os picaretas arrumam o automóvel, quando necessário, e vendem a doação por um preço abaixo do mercado.
-Meu deus...eu disse.
-Neste caso, além de venderem um carro destes para minha filha, não entregaram.
Mas ela não quis brigar por isto, porque o negócio era do pastor...e continua na Igreja.
Ao ouvir isto, eu fiquei pasmo.
 -E o marido da tua filha, não fez nada? perguntei.
-Não, ele é fanático, lhe disse...É destes bem contra gays e racistas...
-Mas a tua filha, por acaso, não é negra?
-Ela e ele são negros...mas são racistas por causa "daquela maldição de Deus contra a África"...
Não pude me controlar e ri. Ele riu também.
-O cara é um idiota, doutor. Num dia destes, numa comédia da TV, um sujeito fez papel de pastor que, depois se descobre, é gay...O marido da minha filha saiu gritando: isto é uma abominação! isto é uma blasfêmia contra deus! Doutor, o marido da minha filha é um idiota! disse o taxista, rindo. E eles ficam sonhando com carrão grande, com viagem para a Europa como fazem os pastores. O marido da minha filha usa relógio que imita ouro para parecer rico como o pastor.
E eu, maldosamente, pensei: além de idiota, o tal genro é brega...o que uma gente destas faria na Europa? Mas, ao invés de dizer uma coisa destas, preferi ponderar:
-E porque não aconselhas tua filha a ir a uma outra religião? Uma evangélica séria, uma Luterana, por exemplo...
E ele me disse, claramente:
-O interesse dela não é deus, não é Jesus. É grana.
Continuou meu novo amigo taxista, refletindo e me dando alguma luz psicanalítica sobre o que Jung chamava de “carma familiar“:
-Eu tenho orgulho da minha filha, porque é uma menina trabalhadora e nunca usou drogas, enquanto eu incomodei um monte minha família porque me drogava. Tenho orgulho dela neste aspecto. Mas queria que ela aprendesse a ter uma visão mais humana sobre a vida e as pessoas. Queria que minha filha se abrisse para alguma evolução (ele usou esta palavra).
Chegávamos ao Hospital. Enquanto descia do taxi, ele me disse:
-Obrigado, doutor, pelo ouvido amigo.
Eu sorri e disse:
-Eu é que agradeço.
Fiquei tocado com o drama enorme da família do taxista, envolvida num esquema de lavagem cerebral e corrupção ideológica, mau caráter explícito, por falta de algum refinamento cultural. Eu diria, por falta de alguma espiritualidade decente. Apesar da lucidez do torturado amigo.