quinta-feira, 28 de junho de 2012

A loira que lia Nietzsche


As pessoas são várias. Às vezes penso isto. Portanto, supreendentes. Diga o Jaques, velho amigo, que me contou uma história vivida por ele. Não são poucas as histórias do Jaques, sujeito que mistura vasta cultura com uma personalidade extrovertida. Na maioria das vezes extrovertida, porque de outras fecha-se a concha e o Jaques viaja por seu mundo interior ou constrói erudição em silêncio. Mas ele, nos momentos para fora tem algo de garanhão, de galã, como bicho saído da hibernação. Pois foi um destes episódios de busca ao mel que o Jaques me disse ter marcado para sempre sua carreira amorosa. Deixo o cara falar:

-Eu estava saindo de um período de alta produção. Havia devorado estudos filosóficos e, de repente, tive ganas de sair para a noite, encontrar alguma gata linda, loira e, portanto, de mente leve...Saí de casa, assoviando, lá pela meia-noite e fui até um bar onde só vai gente bonita...e leve. Entrei e pedi uma cerveja, curtindo a música dos oitenta...Olhei em torno, mirando pontarias e, de repente, vi a criatura: uma Marilyn, platinum blonde, com pernas e curvas perfeitas.
Olhou de lado e...sorriu? Cheguei perto, sorri, e...ela me deixou sentar na sua mesa.

-Oooi...(foi o que ela disse).

Pensei: meu Deus, esta deusa, com poucas palavras e uma mente...leve. Deixei para trás os livros e tentei puxar conversa. Disse, até para impressionar, que estava com a cabeça cansada, que tinha lido muito neste dia e queria relax. Ela disse:

-Eu também...

Como assim, foi à academia, fez pilates, dança do ventre, power yoga, eu pensei. E perguntei, não sem um pouco de ironia:

- O que tu fizeste hoje?

A resposta foi inesperada:

-Li.

O que esta deusa leu, pelo amor de Deus? Consegui ver a cena: no cabeleireiro...ela sentada manuseando uma Caras, ou algum romance, ou livro de auto-ajuda. Imaginei o título: Como alcançar o Amor Quântico. Ou ainda melhor: Vida feliz com Tantra Yoga. Comecei a me sentir inquieto. Perguntei, super curioso, o que havia lido.
Ela sorriu com boca e olhos e falou suavemente:

-Hoje eu terminei de ler Os Filósofos Pré-Socráticos...

Pensei: Um resumo? Livro de bolso? Mas ela disse:

-...do Nietzsche.

O que esta gatinha está fazendo com Nietzsche? Me senti traído, não sei bem por qual dos dois!
E ela começou a me contar sobre sua iniciação nitzcheana na adolescência, com Assim Falou Zaratrusta. Bah! O primeiro da sua vida fora Nietzsche: a primeira experiência. Um êxtase total que a levou ao Ecce Homo, e assim por diante. Na verdade ela estava relendo Os Filósofos... para sedimentar sua crítica aos Idealismos, aos platões da vida, mas ela não tem certezas. E por aí fomos, esquecendo o cansaço. Ela falou que os tempos de hoje são um Renascimento do que faziam os pré-socráticos: pensamento a partir dos dados. Lembrou Kant, riu às gaitadas de Hegel. Emocionou-se ao falar de Arendt.
O mais impressionante é que não havia pose, presunção, empáfia...Não! nenhuma grosseria intelectual destas: ela falava apaixonada. Meu Deus: a loira era filósofa!

O Jaques, ao me contar, botava para fora lembranças fortes. Era um segredo entre amigos. Continuou:
-Lá pelas tres da manhã, no auge da excitação, eu perguntei: tá bem, mas e a Astrofísica? E a teoria das Cordas? E...

Ela olhou para o outro lado, sorriu...e eu vi uma outra deusa, mas morena, estonteante, vindo na nossa direção. Se deram beijinhos e a loira me disse:

-Esta é minha orientadora no doutorado. Uma mente brilhante!

Fiquei de quatro, imaginando o que seria esta outra.

-Tenho que ir, me disse a Marilyn. Outra hora a gente se encontra, tá?

E foram-se. Foram-se assim no mais, e eu, babaca, estava tão atônito que não peguei telefone, endereço...nem nome. Eu fora um contato casual, um a mais apenas.
..
O Jaques suspirou fundo, com olhar esgazeado, olhando para o chão.

-Meu amigo, passei a frequentar livrarias, cafés filosóficos...Andava atento, buscando-a, pelos corredores da UFRGS, da PUC, da Unissinos...Nada. Confesso que enchi da noite, mas lá de vez em quando volto àquele bar para ver se encontro a loira que lia Nietsche...para saber se ela acha que a Teoria das Cordas tem sentido ou é uma invasão da mística budista no terreno da Física...
- Ou a sua orientadora (o Jaques é volúvel).

sábado, 23 de junho de 2012

O Tempo e o Mar


Seguimos pela praia e um forte mar espreita...
Em ondas, entre espumas, ele se alarga e  deita
O imenso corpo verde sobre a areia e  as pedras
A inseminar o mundo de umidade e plâncton.

Continuamos ainda, comparsas nesta vida,
Sentindo a maresia trançada no frio vento
Tocar nossas narinas e alma, num momento
Digno de um sonho ou um símbolo profundo.

Deixamos para trás o que nos era excesso
E os olhos aprenderam a devassar  distâncias,
Reconhecendo o Único, o Ser, o Indivíduo
Em ânsias de tornar-se o que é além das ânsias.

Abandonamos sonhos,  brinquedos de criança,
E a pele que nos veste se fez curtido couro
Por tanto Minuano e sol e maresia e tempo:
A vida nos marcou com tons de prata e ouro. 






domingo, 17 de junho de 2012

Diálogo com o silêncio


Silencio. 
Soa a poesia no silêncio:
“A fonte das idéias é a tua mente,
O magma de onde flui a lava ardente.
A Idéia é uma paixão tornada imagem,
Memória transfigurada da paisagem.
Mas e o teu Sentimento, qual a vertente
Desta água que no ardor te dessedenta
E em que tu, barco num rio, te movimentas?“

Eu respondo: 
O que temos são sistemas,
Rabiscos, sonhos, hipóteses, fé  e poemas
E, tendo  obscura visão do que nós somos,
Não sabemos nunca ao certo em quê damos.
Seguimos cegos,  apalpando  vida e  tempos
E acotovelando-nos em luta, por momentos...

“Insuflado por idéias és galé sob fortes ventos,
E nem percebes teu caminho, o Sentimento“,
Diz o poema.



domingo, 3 de junho de 2012

Epifania


Manhã fresca de sol e de concretos
Na Porto Alegre das tortuosas ruas.
Do ar do sul que chega mansamente
O homem olha o azul, e sente o frio.

A mente suave sabe ver suave a vida
E no silencio do vazio a alma se tece.
Toma o café na manhã como em ascese:
Perdoa o mundo e a vida ao aceitar-se.

E isto lhe vem assim fora dos templos
Pois o seu templo é ele e este momento
De um domingo ao sol, casa em silêncio:
A vida vem sussurrar-lhe o que é um céu...

                                                               painting by: Ricardo Fernandez Ortega