quarta-feira, 28 de maio de 2014

sobre mercados e democracias



Apolo, e por que não Dioniso, sabem do meu amor pelos velhos gregos. 

Os amantes da Grécia partilhamos aquela visão romântica na qual os gregos teriam absorvido de algum mundo ideal, platônico, a sabedoria e a arte com a qual plasmaram as bases do Ocidente e, hoje em dia pode-se dizer, da maior parte do mundo. 
Imagino Thales sentado à beira do mar, recebendo a inspiração de uma sempre jovem deusa com asas nos pés, Athená, que lhe diria: “O! Thales, olha só: a vida veio do mar, rapaz!“. Assim também com a noção da Democracia...teria surgido de uma gente que de tanto respeitar-se mutuamente resolveu,  de repente e por inspiração de Athená, sempre ela: ah! vamos tornar a pólis governada pela totalidade de seus habitantes (os “iguais“, obviamente, não os escravos).
Mas, infelizmente, não foi apenas da natureza reflexiva e intuitiva dos gregos que surgiram a democracia e a própria política. 
 
Estas invenções decorreram, primariamente pelo menos, do oposto exato disto: da atividade comercial que as navegações propiciaram aos gregos.  A busca de novos portos, o contato com outros povos, outras crenças, outros deuses, outras formas de governar. A constatação da diversidade humana e a partir daí a percepção da especificidade grega, a noção de pertencimento a um povo específico entre outros tantos, com suas idiossincrasias. Esta atividade de abertura para o mundo e a relativização daquelas verdades que eram lei num meio mentalmente limitado e rural, fez com que os gregos desenvolvessem uma sociedade de comércio de bens e culturas, de mercado. Talvez a própria filosofia, com a transcendência sobre o pensamento mítico, tenha sido desenvolvida a partir desta noção que relativiza as verdades - divinas e humanas - porque sabe que o mundo é amplo e as visões são diversas. 

E assim foram-se embora Apolo, Dioniso e Athená. See you later, amores...

Após a queda do Império Romano, com a ascensão do Catolicismo, o mundo pareceu esquecer aquele espírito aberto, navegador, comerciante, inquiridor e livre da Grécia. Mas os aprendizados fundamentais se mantêm. 
Vejamos Barcelona, quer dizer, Barcino naquelas épocas da Alta Idade Média. Era uma comunidade de tradição antiquíssima que, graças à sua localização geográfica  à beira do Mediterrâneo e aos apetites originais de sua gente, resolveu vencer o medo dos castigos divinos e lançar-se com gana pecaminosa ao velho e bom comércio. Surgiram os mercaders, homens corajosos que, semelhantes a heróis gregos, com suas embarcações de velas enfunadas (inspirados novamente por Athená?) iam de porto em porto, conhecendo povos e culturas, desbravando o velho continente. 
Estes homens foram, novamente, os que entenderam a relatividade, e a peculiaridade, das verdades e hábitos  de sua gente. Enriqueceram, constituindo o que veio a ser denominado posteriormente burguesia e criaram as bases para a derrocada do espírito medieval.  Bye, dear Javé...

O povo de Barcelona deu-se ao luxo de escolher bens e produtos, centralizou as feiras nas cidades para as quais afluíam pessoas e mercadorias para o consumo, conheceu a exportação e, porque não a importação de bens. E passou a abominar cada vez mais a aristocracia e o clero, com a ascensão daquela gente que conquistava seu sustento e poder pelo próprio trabalho: os burgueses. 
Hello, Idade Moderna!
Florença e Veneza foram também exemplos disto, assim como o são todos os países verdadeiramente democráticos do mundo contemporâneo. 

O espírito de troca, a liberdade de mercado, a urbanidade, a sociedade de livre comércio são sinônimos de Democracia como nós a conhecemos. Incluindo o valor espiritual icônico que lhe é característico: o do indivíduo livre e empreendedor. 

Todo o controle estatal sobre estes fatores, toda ideologia que massacre estes potenciais constituem retrocesso a um mundo rural, restritivo, fechado, pré-helênico, ou ainda, medieval. Exemplos disto foram os frutos do Totalitarismo comunista de triste memória.

E como se explica que ideologias coletivistas contrárias à liberdade de mercado, que abominam as burguesias, seduzam a intelectuais reconhecidos, levando-os mesmo a apoiar regimes totalitários? Talvez porque estes intelectuais sintam-se acima dos “decadentes burgueses” e de alguma forma percebam-se como uma elite que outorga justificação ideológica às novas monarquias, seus Partidos. Como fazia antigamente a Igreja Católica. Idealizam e planejam a criação de um Novo Mundo, numa espécie de retorno à Idade Média, livre da engenhosidade dos mercaders, e com a Economia e as vidas dos “cidadãos comuns” novamente dependentes das benesses de um senhor com seu bando de novos nobres, os “intelectuais”. Um sistema em que os arroubos criativos individuais deste “homem comum”, sejam contidos ideologicamente e por meio de isolamento em prisões, “campos de reeducação do pensamento”, os “gulags”, lavagem cerebral, castigos físicos e - por que não?- a morte. Esses intelectuais crêem saber melhor do que a plebe rude o que um cidadão precisa para viver e como deve agir. Ou simplesmente por um “narcisismo profissional”, pois os intelectuais sentem-se em desvantagem nos mecanismos de competição social das democracias liberais. Ou consideram-se os lídimos representantes dos deuses, ou os agentes da destruição dos valores do “mundo arcaico”.

Duvido que Athená esteja envolvida nisto. As furiosas Erínias talvez.




sexta-feira, 23 de maio de 2014

praia arcaica


Deixa cair a túnica e, nu, recorre a praia
A ouvir a música das ondas e da brisa.
Tudo se explicará sem que qualquer palavra
Vibre no ar, ferindo o ouvido, e cale a musa.

Tudo será silêncio das regras ensinadas,
Das ideologias pregadas por facínoras,
Das rezas que religam nada com o nada,
Das coisas que são lixo e que fascinam.

Nada fará sentido exato em ti e, contudo,
Perceberás que é isto que te ensina a vida:
Andar livre e desnudo numa praia arcaica,
Saber de si somente e assim saber de tudo.





sábado, 17 de maio de 2014

stabat mater


Há uma tristeza da vida  em cada canto
Que é um adeus que damos,
Ou daremos.

Uma tristeza que já foi espanto,
Mas que a cada vez o é menos.

Dor de sempre despedir-se
Ao ver ir-se
O amor que
Vivemos.





segunda-feira, 12 de maio de 2014

quase tudo


Quase tudo o que comove, treme as bases,
Que disseca a carne viva da alma e, suave
Faz brotar  semente interna, molda a lava,
Doma a fera, lava o Homem, eleva a mente.

Quase tudo o que demove a absurda sina,
Que transporta o sol do fundo para fora.
Quase tudo o que aflora sonho e empina
O coração ao alto:  sursum corda“,

 (A transformar em povo o que era horda).

Quase tudo o que remove o que emperra
O que a vida quer que seja, e diz e berra!
O que é corda, paraquedas, dom e escada
Para alçar quem é ninguém a além do Nada.

O que se expande até o limite e daí pende,
Mas é a leveza no que pesam nossos dias,
É a língua mais arcaica que se entende:
          Símbolo, Arte, Poesia.

Detalhe de “Moulin Rouge“
Henri-Marie Raymond TL de Monfa