Notre-Dame em chamas!
Uma memória surge:
minha primeira visita à Catedral. Estava sozinho e era bem garoto. Havia
perfume de incenso no ar e o imenso templo era silencioso ainda que repleto de
gente. Consegui um lugar perto do pórtico da entrada e, ao levantar a cabeça, dei-me conta de que estava diante da estátua de Joana D’Arc, figura que sempre
me emocionou.
Começou a missa. Em Latim. O imenso órgão vibrou com uma melodia
belíssima e um coral entoou canto Gregoriano. Coisas atávicas brotam na
gente numa situação assim: a Catedral inundada de música e litanias, o perfume do incenso, as orações dos fiéis, a luz pelos vitrais, Joana D’Arc
representada à minha frente. Grande emoção, nó na garganta e lágrimas que o gaúcho
aqui tentou esconder.
Eu estava no palco mesmo da
História, na catedral construída em homenagem a Santo Estevão em pleno século
VII e reconstruída no século XII. Atacada e vandalizada no período da Revolução
Francesa, num ritual de entronização de uma prostituta no templo cristão, aos
berros de ‘Deus está morto”, quando todas as grandes estátuas que decoravam seus
portais foram destruídas, com exceção de uma escultura de Maria, no altar-mor.
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Ali fora, ao lado
esquerdo do Sena, antes de entrar na Catedral, eu percebi pela primeira
vez algo que reconheci posteriormente como sendo o Espírito Europeu, sintetizado numa imagem: a belíssima Île de la Cité onde se
situa a Catedral tendo como vizinha na outra margem do rio, uma loja onde se
vendiam frangos, porcos, aves, e aquele tipo
de produtos e bugigangas de mercadinho de cidade pequena. O Louvre, perto dali, ainda não tinha
pirâmide de vidro e era cercado por terra sem jardinagem, sem aquele asfalto
horroroso aparentemente higiênico que caracteriza Londres. Terra abençoada de
pequena cidade mantida no coração de Paris. A megacidade, ultramoderna
como se podia já então ver em La Défense, era ainda e para sempre, enquanto existir a
Civilização Ocidental, a vila, a pequena
comunidade de Lutetia Parisiorum, que foi cristianizada por Saint Denis, mártir
executado no Mont Martyrum (Montmartre), santo patrono de Paris, cidade protegida
por Sainte Genevieve, transformada depois em capital do Reino dos Francos por
Clovis. Ali estava viva a
História, como em qualquer antiga cidade ou aldeia europeia.
Na missa eu senti novamente
isto: História viva nas construções da
Arte e da Religiosidade Ocidentais, componente preciosa do desenvolvimento Humano. Mesmo sem
ser católico, esta experiência que eu poderia chamar de mística, ou ainda
cultural, movimentou minhas estruturas, ampliando-me a compreensão.
Não houve neste lugar somente
beleza e grandiosidade humanas, foi o que nos cantou Victor Hugo na sua obra
popular Notre-Dame. Houve fanatismo, amordaçamento de consciências. Mas, como
ensinou Jung, a Igreja é a representação simbólica da Mãe. Um povo, um indivíduo,
demonstra maturidade somente quando, ao reconstituir o passado, é capaz de compreender os
erros, aceitar, amar mesmo, a humanidade das pessoas, das comunidades e de si
próprio, numa espécie de perdão. Especialmente, os erros e a grandeza dos próprios
pais.
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A grandiosidade de Notre-Dame,
a luz histórica e espiritual da Donzela de Orleans que eu admirava naquela estátua,
a missa e o canto religioso são minhas memórias de algo que foi perdido em meio
às chamas.
Perdido?
Se é verdade que a
pedra esculpida é a representação do Espírito Humano e que só este permanece, nada se
destruiu, pois vive ali, como mensagem na memória, o símbolo da atávica história
do sacrifício por amor e da necessidade do perdão.
E, sem qualquer dúvida, propaga-se e segue vivo, aquele chamamento ao amor, que se mostra maior do que todas as revoluções que recorrentemente tentam destruir com ódio ao Humano, além das obras de Arte, a liberdade e os indivíduos. Revoluções iconoclastas que culminam sempre em Terror e genocídio,
falhando no seu intento pueril de edificar um Novo Tempo, um Novo Mundo, um Novo Homem.
Se houve terrorismo, falhou. Falhará sempre!
Segue viva
a catedral de Santo Estevão e São Denis, fundada em homenagem a Maria, no coração de
Paris, da Europa, da Humanidade. Para sempre.
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