sexta-feira, 31 de maio de 2024

Ser médico

Por algum motivo, acordei pensando sobre os meus inícios na Medicina. Quando mais garoto, trazia um forte viés filosófico, artístico e religioso. Mas dei-me conta, logo ao entrar no Curso de Medicina na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que o que eu viveria a partir daí, pelos próximos seis anos, era um verdadeiro "processo iniciático", não numa ideologia, mas nos processos de descoberta da mais dura realidade da vida. Muito difícil, intenso, profundo. Algo que seria em português do Brasil: "ou vai, ou racha". Pois resolvi seguir.
Eu era um aluno esforçado, desde que me conheço por gente. Mas nunca o "certinho" das turmas. Sabia confraternizar, falar nas aulas, fazer festa. E, confesso, que dava "cola" aos colegas. Por espírito de rebeldia e diversão. Pois, ao iniciar a Medicina, jurei a mim mesmo nunca mais fazer isso. Porque Medicina trata da vida humana, e todo o conhecimento, nas cadeiras básicas, ou depois nas clínicas, era meu novo "Sagrado".

A Escola de Medicina é um processo de Iniciação, refleti novamente hoje pela manhã.

 Por outro lado, tive, não sem sofrimento, de deixar os meus livros de filosofia, ciências gerais, e outros de Literatura na estante. E os meus pincéis, meus papéis e telas. Não havia espaço... Eu, que era um aluno "de primeira" nos anos de formação primária e secundária, sofri os reveses de tirar notas, não diria baixas, mas "na média". Sentia-me envergonhado e despendia enorme esforço para conseguir abarcar os assuntos e as complexidades da formação médica. Buscava estudar nos livros, diretamente, e não em "anotações de colegas" que circulavam na turma. Jurei que eu estudaria nos livros, mesmo que as notas não fossem as melhores pelo volume de material. E lá ficavam os prazeres das artes da juventude.

A Medicina é um cônjuge ciumento, pensei hoje, pela manhã, como alguém no passado me disse.

E, ao longo dos anos, percebi que em Medicina, estamos sempre, e a cada dia, diante de desafios para os quais temos que atuar da melhor forma, sem estar "totalmente" preparados. Cada paciente, e alguns deles de forma muito intensa e especial, exige-nos resolver questões que escapam ao que até aquele momento havíamos estudado. Cada paciente coloca-nos diante do desafio de estudar, de criticar informações, de checar referências. O que hoje se sabe pode ser distinto do que há um ano se sabia. Passei a estruturar os meus próprios protocolos para as diversas situações que atendia: grandes queimados, dor, nutrição, asma de difícil tratamento, sepse e mais tarde, doenças gastroenterológicas e hepáticas. Ler, reler, anotar, ler, buscar... Modificando condutas a partir do surgimento de novas evidências, e sempre analisando a qualidade dos dados. E isto, diariamente.


Na Medicina, nunca estamos prontos, refleti esta manhã.

Lá pelos inícios deste processo, sentia grandes dúvidas sobre "o quê eu estava fazendo da minha vida"... Podia ter feito outras opções, mais fáceis e com mais encanto, talvezA minha escolha levou-me a ter que lidar com os sofrimentos mais básicos e profundos, deste mundo, a realidade sem máscara, saídas fáceis, explicações prontas, ou ideias preconcebidas. Pés no chão, e estudo ao longo dos anos, incluindo pouco sono, muita ansiedade por lidar com as dores dos semelhantes. Em especial, das crianças e os seus familiares.
No meio destes questionamentos, ainda na Faculdade, tive um desses sonhos que sempre nos ajudam a definir caminhos. No sonho, um médico, um senhor com uma longa barba branca, disse-me, carinhosamente: "esta é tua história... E vais trabalhar é com Medicina até o teu último dia". Pois daqui à meia hora tenho aulas a dar... de Medicina.

Como escreveu Fernando Pessoa, no poema O CONDE D. HENRIQUE:

Todo começo é involuntário

Deus é o agente,

O herói a si assiste, vário

E inconsciente.

À espada em tuas mãos achada

Teu olhar desce.

«Que farei eu com esta espada?»

Ergueste-a, e fez-se.

 

sábado, 25 de maio de 2024

Des implants de l´espoir

Je veux le vaste bruit de toutes les vagues

Et les sons des mots que je lis sur les lèvres,

Les sens qui animent les thèmes communs

Ou profonds de nos proses triviales.


Restaurer en Bach son originel accent 

Les aigus mélodieux vibrants de Chopin 

Les oiseaux gazouillent, et les feuilles

Des arbres, bruissement, en dansant.


Presque quand je le perds, j'apprends la valeur

Parmi les bénédictions que la vie m'a données :

La lumière pour les yeux, les sons pour l'idée


L'étreinte de la parole qui nous rend humains

Avec le sentiment qui naît entre nous

Quand  j'entends ta voix ou que je vois tes yeux.

Implantes da esperança

Quero o som amplo de todas as ondas

E os detalhes sonoros que leio nos lábios,

Os seus sentidos que animam os tolos

Ou profundos temas das triviais prosas.


Repor o som exato de Bach que havia,

As finas melodias de Chopin a vibrar,

O chilreio da revoada, e as folhas

Das árvores, farfalhando, ao dançar.


Quase ao perdê-lo, é que aprendo o valor

Das humildes bênçãos que vida me dá:

A luz pelos olhos, os sons para a ideia,


O abraço da fala que nos torna humanos,

Com o sentimento que brota entre nós

Quando vejo teus olhos, ou ouço tua voz.


quarta-feira, 1 de maio de 2024

a juventude da Arte

Viemos a Viana do Castelo para visitar esta antiquíssima preciosa joia à beira-mar na Costa atlântica do extremo norte de Portugal, junto à Galícia, a uma hora de Vigo. Região onde dezenas de povos desde os períodos pré-históricos, incluindo os celtas, lusos, gregos, romanos, godos, construíram suas vidas e obras. Seriam mais de 30 diferentes povos…Enfim, o sempre surpreendente Norte Português, antiquário, e moderníssima realidade contemporânea, qualidade de vida incomparável, incluindo a beleza arquitetônica das casas e construções, qualificação de engenharia, infraestrutura, limpeza urbana, culinária saudável e deliciosa. E os renomados vinhos verdes e brancos típicos desta região que os Romanos chamaram Gallaecia, terra dos galegos (Welsh people, para os britânicos). Sem falar das tradições, vestimentas típicas, danças e a sonoridade das gaitas de foles. Viemos ver apartamentos para comprar. O mar é azul brilhante aqui, como o rio Lima no seu fluxo claríssimo e transparente. As ruas são plenas de vitalidade e tranquilidade. Segurança absoluta. Muitos bons restaurantes. E os preços das casas ainda são suportáveis para as nossas possibilidades, ao contrário do amado Algarve, de Lisboa e do Porto. Vimos 6 apartamentos ontem, cinco deles bons, dos quais dois muito bons. Mas não escrevo por isto. Fiquei, isto sim, encantado de conhecer o proprietário do último apartamento. Gustavo subiu pelas escadas com as funcionárias da Imobiliária. Monsieur X e eu subimos pelo elevador. Ele mede cerca de 1.80m, uma postura ereta que começa a encurvar-se. Teria segundo meu olhar clínico uns 70 anos. Vestia-se com um “casual look” incluindo uma pochete “estilosa”, boné. Cores corretas e elegantes. Descolado, se diria no Brasil... Com forte sotaque de um Português afrancesado, disse-me: -o apartamento eu gosto, mas ando com uns probleminhas…estou com 91 anos de idade. Eu me surpreendi e repliquei: “uau! Que maravilha, parabéns.” Pareceu-me inacreditável meu erro de diagnóstico visual. Abriu a porta da residência e o que vi foram quadros de arte contemporânea pelas paredes dos corredores, salas, quartos e escritório. Quadros muito bons!!! De diversos autores, talvez alguns feitos por ele mesmo. E no chão tapetes persas de diversas dimensões, daqueles que têm suas histórias e reconhecidas procedências. Móveis moderníssimos mesclados com “móveis de demolição” recuperados. Esculturas e objetos de arte. Lembrei imediatamente dos meus amigos artistas de Porto Alegre, especialmente do querido Fernando Baril, da querida Berenice Unikowsky, do trabalho genial de recuperação de peças arquitetônicas do Normelio Brill, algo mesmo do nosso ap em Porto Alegre. Mas o que mais me alegrou, além do reconhecimento de coisas materiais, na verdade, foi algo sutil envolvendo o “espírito artístico” impregnado na arquitetura de um ambiente. E, sobretudo, perceber no quê se transformou ser “idoso” nestes novos tempos. Chequei com rápido olhar a biblioteca de Monsieur X: livros espetaculares sobre assuntos que me encantam. Vi que o senhor é Belga, como o saudoso amigo Dominique Boxus. E o escritório, “bagunçado como deve ser”, com um complexo de duas enormes telas de computador, e seus equipamentos atualizados. Ali ele trabalha…e eu fiquei curiosíssimo: em quais projetos? Com quais aplicativos? Quais os temas? Ou seja, como tenho estado preocupado com o assunto da idade, e do envelhecimento, esta visita me levou a conhecer um jovem sofisticado e criativo rapaz de 91 anos. Os tempos e a Medicina, graças a Deus, são outros. Envelhecer por dentro é apenas a pior, e mais medíocre, das opções. Uma pena morarmos - por enquanto - tão longe. Adoraria ser amigo deste artista e intelectual belga e saber suas opiniões sobre a pintura flamenca e, certamente, sobre a do Basquiat.