quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Laterna Magica, sobre Ingmar Bergman

Li, durante as férias, uma autobiografia do Ingmar Bergman, intitulada Laterna Magica (Gallimard, collection Folio, 1987). É a autobiografia mais íntima do Bergman, que trata de coisas como sua encoprese, suas insônias, seu surto, sua extrema sensibilidade, seus múltiplos casamentos que geraram filhos com os quais pouco teve contato. Seus sonhos recorrentes, alguns assustadores, alguns belíssimos e inspiradores. E o processo de criação deste gênio que produziu algumas das coisas mais espetaculares que nossos tempos puderam ver na jovem arte do cinema.
A verdade é que Bergman era um mistério para mim...como um homem aparentemente tão polido, civilizado, seco, produziu algo como Cenas de um Casamento, Face a Face, Gritos e Sussurros, e a “terrível“ obra (no sentido de maravilhosa, e capaz de me despertar a dolorosa emoção do vazio) denominada Sonata de Outono. Como um evidente agnóstico veio a colocar em cena de forma tão tocante a espiritualidade profunda de Mozart em A Flauta Mágica, que me fez chorar de emoção. Ou o maravilhoso Fanny e Alexander, que me soou como uma espécie de suave perdão à carga cultural luterana que recebeu do pai, um rígido religioso. Sem contar As Melhores Intenções, no mesmo tom.
E, confesso, o livro deixou-me ainda mais pasmo. Bergman fala de si, com uma honestidade belíssima. Suas confissões, porém, não resolvem o meu “enigma Bergman“. Como gênio, Bergman era mais complexo do que eu poderia imaginar, abarcando o crente e o cético, o pai amoroso e frio, o juiz terrível e o filho que perdoa, o homem maduro e a eterna criança. 
Algumas coisas são super interessantes e eu me arrisco a tentar traduzir.

Sobre o idealismo político juvenil da esquerda e 1968, ele anotou (pg. 264): “ Eu desprezava um tipo de fanatismo que eu reconhecia desde a minha infância: a mesma emocionalidade mudando apenas as notas musicais. Ao invés de ar fresco, tivemos a caricatura, o sectarismo, a intolerância, a complacência ansiosa e o abuso de poder. O quadro é sempre o mesmo: as ideias são burocratizadas e corrompidas. Às vezes isto ocorre rapidamente, de outras leva cem anos. No que concerne a 68, isto ocorreu com uma velocidade vertiginosa. Os danos causados em tão pouco tempo foram surpreendentes e dificilmente reparáveis“. Atual para nós, brasileiros.

Sobre a espiritualidade, em relação às suas crenças ele descreve o que viveu depois de ter experimentado uma anestesia (pg. 271): “Estas horas desaparecidas durante a minha operação me trouxeram uma mensagem tranquilizante: tu nasces sem haver pedido, tu vives sem que isto tenha outro sentido senão o de viver. Quando tu morres tu te extingues. Tu eras um ser e te transformas no não-ser. Não há um deus para reger nossos átomos. Este saber me deu uma espécie de serenidade, que decididamente expulsou a angústia e a confusão. “.

Mas, ao mesmo tempo ele confessa (pg. 270): “Por outro lado, eu jamais reneguei a minha vida original, minha vida espiritual.“

Narra Bergman algo que eu nunca havia imaginado a seu respeito. Ele viu espectros, espíritos, em algumas situações. Diz ele: “Fantasmas, diabos, demônios, bons, desobedientes ou simplesmente descontentes. Eles me sopraram o rosto, me empurraram, espetaram com agulhas, eles puxaram a minha camisa. Eles falaram comigo, assobiaram, sussurraram: vozes claras, não muito inteligíveis, mas impossíveis de serem ignoradas“. 
Consegui então entender o Bergman da Flauta Mágica e o complexo gênio me pareceu, graciosamente, mais doce, mais profundo e humano.



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