Paulo despertou de sonhos confusos: a casa da infância, os pais, amigos sumidos nestes 70 anos. Lívia, a amada, pedindo para dançar e ele negando. Sonhos.
Lívia se fora. Ele
ficou. Sozinho, dor nos joelhos, nas ancas, visão turva, audição falha, pele manchada,
com nervuras, velha casca de sobreiro. Ao levantar-se, lembrou que era Natal. Dia qualquer duma vida oca. Barbeando-se, tonteou,
mareado. E o inesperado aconteceu.
Surgiu-lhe um anjo.
(Expliquemos. Não era
anjo de Igreja, ou Super-Anjo Americano. Nem palpável era, ou alado. Era a voz
que Paulo reconhecia de menino, murmurando debilmente entre os ruídos da
máquina de pensar. Nos silêncios, Paulo ligava rádio para que outro som ocultasse
a voz que agora ouvia claramente).
O Anjo disse
- Sim, sou eu.
E convidou
-Veste-te. Vamos à rua,
que é Natal.
Paulo obedeceu.
Já na Alameda Europa, Paulo
viu a Serra da Estrela nevada, como se da vez primeira.
Disse-lhe o Anjo
-Tens razão ao dizer
que o Natal é um dia comum. Como em
qualquer dia, o sol cruzará o horizonte, reinaugurando a vida, e das fontes do
Covão d’Ametade brotarão água e poesia. Sem dar-te conta.
Paulo pensou: estou
louco! Não havendo como fugir ao Anjo, respirava com dificuldade.
- Perco o fôlego! O
coração dispara! É minha morte, Anjo?
-Isto não interessa, respondeu
o visitante.
Devagar, o sopro da
respiração voltou-lhe como voltara no dia primordial em que, aos gritos, Paulo nasceu.
Apercebeu-se, igualmente, do coração a bater ritmado dentro dele e para ele,
como uma prenda diária. Sentou-se num banco, olhando as montanhas, como o
menino que fora, a recitar poemas.
Prosseguiu o Anjo
-Pela Alameda Europa, mil
vezes respirarás sem dar-te conta e, sem dar-te conta serás mais sábio e mais
profundo. Na Avenida Anil verás a Terra transformar-se a cada giro que ela gira
desde que o mundo é mundo. Sem dar-se conta, na Gardunha ressurgirão flores
que, em silêncio, darão frutos.
O Anjo, ou Paulo,
continuou
- Crianças darão seus
primeiros passos nas casas do Pelourinho e amores produzirão beijos, abraços e
(por que não?) alguns espinhos.
A Serra transmutara-se
em cenário 3-D expressionista: pontos brilhantes verdes, róseos e, em tons
pastéis, as pedras e as casas. No alto, um azul celeste a fundir-se com
violetas. Pelas calçadas, velhos conhecidos seguiam sua marcha urbana com
netos, cães, sonhos, ocultos anjos e demônios.
Paulo, comovido, balbuciou
- Sem que nos demos
conta, triunfará a vida, a Silenciosa, a Desapercebida, gerando mais vida em
mutação, com átomos que não vemos e cordas e dimensões que nós desconhecemos,
em plena Covilhã.
O Anjo então concluiu
- Nisto repousa o
mistério deste dia de Natal, como de qualquer outro: os mais preciosos bens que em ti
vivem, vivem por ti sem que nem te dês conta, de tão perenes, humildes e
comuns.
Paulo, assustado, perguntou
ainda ao Anjo
- Morrerei, então, agora?
O visitante
respondeu-lhe com ar maroto, sorrindo, ao ir-se:
- “Ó Paulo, deixa de
ser trágico! Desfruta Hoje, o paraíso”.
Me emocionou e me fez refletir! Obrigada por este presente de Natal!
ResponderExcluirSó agora li teu comentário. Grande abraço!
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