domingo, 14 de agosto de 2016

trilha sonora

Ontem abriu-se a caixa de Pandora
Ao som sedutor do Crowded House.
Escoaram emoções, rotas comportas
Do dique que fazia o esquecimento:

Reviveram num instante as madrugadas
E doces amores, tantos, que se foram,
Rondas noturnas, transas, dancings,
E companheiros idos com o vento.

Ouvi de novo Cazuza, Lulu Santos,
Gloria Gainor, Christie e Chicago.
Pandora abria aos meus sentimentos
Aqueles doidos dias do passado.

Não foi somente saudade o que senti,
Foi brotar vivo de novo nas memórias
Todo o amor, o sonho, o frenesi,
Com a trilha musical da minha história.



segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Rara experiência comum

Depois de muitas décadas, assisti a uma missa. Fui irresistivelmente levado por um impulso a sentar-me na Catedral negra, feita de pedra vulcânica, de Clermont-Ferrand, como o era na linda antiga Igreja neo-gótica do Menino Deus. A catedral de Clermont-Ferrand se mantém ali há quase um milênio, enquanto a de Porto Alegre, que era uma jóia arquitetônica, foi substituída por um cubo de concreto e tijolos à vista. Assim são as opções culturais que embrutecem a inteligência de alguns povos. Sentei-me num dos bancos de madeira e fiquei admirando a arquitetura sóbria e as pessoas, de todas as idades, que começaram a encher o templo. A comunidade de Clermont-Ferrand. Confesso que, de algum modo, viajei à infância e me senti em casa naquela que é ainda a minha ecclesia, a essência com a qual me identifico: ocidental, imperfeita mas aprendendo, baseada no sacrifício pelo amor e que, ao absorver as culturas grega, latina e judaica, consegue-se manter em pé por mais tempo que esta catedral. Em Clermont-Ferrand estava em casa e esta é a função de um templo. De repente uma música impressionante brotou do imenso órgão localizado atrás da nave, enchendo o ambiente com um som inicialmente atonal, depois, lentamente, transfomando-se em uma harmoniosa sinfonia. Não reconheci o autor, mas percebi o seu gênio. Refleti que as pessoas trazem do mundo o caos das suas existências, representado pela atonalidade, e que, ao longo da missa, na integração com a ecclesia, este caos pode-se transformar em cosmos, numa harmonia rica como a Natureza. Um caminho inverso à obra de Adrian Leverkühn, o compositor do Fausto de Thomas Mann que, ao viver na Alemanha Nazista, passou da harmonia à atonalidade, refletindo o contato do homem sensível com o diabólico poder do Totalitarismo. Alguém veio até mim para pedir que eu fosse um dos que leriam pedaços do Evangelho diante da assembleia. Declinei do convite, sou visitante! O padre, o qual me evocou aquele outro degolado há alguns dias em outra catedral gótica francesa, veio a sorrir na direção de cada um de nós, cumprimentando-nos pessoalmente. Um aperto de mão. Bon jour, mon fils. Bon jour, prêtre. Ele se dirigiu ao presbitério, enquanto uma senhora de aparência absolutamente comum começou a cantar, talentosíssima soprano que era, uma das mais lindas canções que eu já ouvi. Esta voz divina se manteve acompanhando todo o percurso da missa, junto à sinfonia do órgão e das vozes das pessoas da comunidade. Um espetáculo, encenação neste caso de alta qualidade como convém ao interior da França. Compreendi que isto é que compõe o ritual da missa. Teatro, o mais puro e ancestral. A representação da tragédia inicial, o drama do herói que se faz pequeno ao viver sua humanidade, é sacrificado na experiência humana, mas sobrevive à morte. Teatro de rara beleza, teatro como os gregos ensinaram, no qual culto e arte perdem seus limites. Ao representar o drama fundador reintegra-se no fiel a ideia original, o sentido. Pessoas da comunidade subiam, de tanto em tanto, até o presbitério e liam pedaços do drama. Alguns jovens manejaram estojos de prata distribuindo incenso no ambiente. Houve pão de hóstia e vinho. Cumprimentamo-nos todos. E encerrou-se a missa, num ambiente de suave euforia envolvendo uma surpreendente multidão. Quantos jovens, quanta gente! Confesso que depois de décadas, este cristão aqui ficou tocado por recordar algo que lhe permanece vivo no coração. Especialmente nestes tempos graves em que o símbolo do sacrifício pessoal por amor aos outros tem sido violentado pela tenebrosa distorção de um sacrifício suicida que visa a destruição de inocentes em nome do Terror. Mas esse sacrifício egoísta e cruel é a mentira palavrosa do demônio que enlouqueceu o herói fáustico de Thomas Mann. Nesta missa em Clermont-Ferrand o que reencontrei foi a voz suave de um verdadeiro amigo. E a boa nova é que ele vencerá, pois é amor indestrutível.