quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

adjetivos e suas surpresas

Não há nada mais Americano
Que um negro americano
Cantando,

Nada mais Ocidental
Que um japonês.

Não há nada mais Brasileiro
Que um paulista
Em protesto
Na Paulista.

Não há nada mais futurista
Que uma casa branca
Num campo não poluído,
Nem maior cidadania
Que paredes
Sem graffiti.

Não há nada mais ousado
Que a garotada a curtir Handel.

Nada mais fora de moda
Que piercing e tatuagem,
E sexo sem proteção
Ou com qualquer um.

Nada mais velho
Que sentimentalismo bobo
Aplicado à Política,
Ou à (má) poesia.

Não há nada mais descrente
Que um crente
A repetir versículos,

Nem mais religioso
Que um cético astrofísico
A falar sobre
Infinitos
Multiversos.


sábado, 26 de novembro de 2016

o herói do povo

Fidel Castro morreu

Com quantas vítimas se constrói um ídolo?
Com quantas mortes se edifica o herói?
Mortes de corpo e alma: mortos-vivos,
E os mortos por faca, forca, carabina.

Com quantos infernos institui-se um paraíso?
Quanto de miséria transvestida de riqueza, 
E gritos no calabouço silenciados por hinos?
Com quanto de pequenez encena-se grandeza?

Com quanto de violência se simula a Paz,
E de indecência proclamando-se a Utopia?
Com quanta mentira se calam as consciências?

Quanto de atraso implica um Novo Mundo,
Quanto de descaso, crueldade, mal profundo
Para haver o herói do povo e sua audiência?










domingo, 25 de setembro de 2016

mistério

Cada um de nós é
Formiga, átomo,
Grão de poeira,
Tão pequeno quão grande
For a lente que se use,
Ou a escala que se queira,
Mas pelo mistério
De haver Consciência
Em torno de cada um
Gira o Universo
E é para cada um
Que o Infinito escreve

Música e Verso.






domingo, 14 de agosto de 2016

trilha sonora

Ontem abriu-se a caixa de Pandora
Ao som sedutor do Crowded House.
Escoaram emoções, rotas comportas
Do dique que fazia o esquecimento:

Reviveram num instante as madrugadas
E doces amores, tantos, que se foram,
Rondas noturnas, transas, dancings,
E companheiros idos com o vento.

Ouvi de novo Cazuza, Lulu Santos,
Gloria Gainor, Christie e Chicago.
Pandora abria aos meus sentimentos
Aqueles doidos dias do passado.

Não foi somente saudade o que senti,
Foi brotar vivo de novo nas memórias
Todo o amor, o sonho, o frenesi,
Com a trilha musical da minha história.



segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Rara experiência comum

Depois de muitas décadas, assisti a uma missa. Fui irresistivelmente levado por um impulso a sentar-me na Catedral negra, feita de pedra vulcânica, de Clermont-Ferrand, como o era na linda antiga Igreja neo-gótica do Menino Deus. A catedral de Clermont-Ferrand se mantém ali há quase um milênio, enquanto a de Porto Alegre, que era uma jóia arquitetônica, foi substituída por um cubo de concreto e tijolos à vista. Assim são as opções culturais que embrutecem a inteligência de alguns povos. Sentei-me num dos bancos de madeira e fiquei admirando a arquitetura sóbria e as pessoas, de todas as idades, que começaram a encher o templo. A comunidade de Clermont-Ferrand. Confesso que, de algum modo, viajei à infância e me senti em casa naquela que é ainda a minha ecclesia, a essência com a qual me identifico: ocidental, imperfeita mas aprendendo, baseada no sacrifício pelo amor e que, ao absorver as culturas grega, latina e judaica, consegue-se manter em pé por mais tempo que esta catedral. Em Clermont-Ferrand estava em casa e esta é a função de um templo. De repente uma música impressionante brotou do imenso órgão localizado atrás da nave, enchendo o ambiente com um som inicialmente atonal, depois, lentamente, transfomando-se em uma harmoniosa sinfonia. Não reconheci o autor, mas percebi o seu gênio. Refleti que as pessoas trazem do mundo o caos das suas existências, representado pela atonalidade, e que, ao longo da missa, na integração com a ecclesia, este caos pode-se transformar em cosmos, numa harmonia rica como a Natureza. Um caminho inverso à obra de Adrian Leverkühn, o compositor do Fausto de Thomas Mann que, ao viver na Alemanha Nazista, passou da harmonia à atonalidade, refletindo o contato do homem sensível com o diabólico poder do Totalitarismo. Alguém veio até mim para pedir que eu fosse um dos que leriam pedaços do Evangelho diante da assembleia. Declinei do convite, sou visitante! O padre, o qual me evocou aquele outro degolado há alguns dias em outra catedral gótica francesa, veio a sorrir na direção de cada um de nós, cumprimentando-nos pessoalmente. Um aperto de mão. Bon jour, mon fils. Bon jour, prêtre. Ele se dirigiu ao presbitério, enquanto uma senhora de aparência absolutamente comum começou a cantar, talentosíssima soprano que era, uma das mais lindas canções que eu já ouvi. Esta voz divina se manteve acompanhando todo o percurso da missa, junto à sinfonia do órgão e das vozes das pessoas da comunidade. Um espetáculo, encenação neste caso de alta qualidade como convém ao interior da França. Compreendi que isto é que compõe o ritual da missa. Teatro, o mais puro e ancestral. A representação da tragédia inicial, o drama do herói que se faz pequeno ao viver sua humanidade, é sacrificado na experiência humana, mas sobrevive à morte. Teatro de rara beleza, teatro como os gregos ensinaram, no qual culto e arte perdem seus limites. Ao representar o drama fundador reintegra-se no fiel a ideia original, o sentido. Pessoas da comunidade subiam, de tanto em tanto, até o presbitério e liam pedaços do drama. Alguns jovens manejaram estojos de prata distribuindo incenso no ambiente. Houve pão de hóstia e vinho. Cumprimentamo-nos todos. E encerrou-se a missa, num ambiente de suave euforia envolvendo uma surpreendente multidão. Quantos jovens, quanta gente! Confesso que depois de décadas, este cristão aqui ficou tocado por recordar algo que lhe permanece vivo no coração. Especialmente nestes tempos graves em que o símbolo do sacrifício pessoal por amor aos outros tem sido violentado pela tenebrosa distorção de um sacrifício suicida que visa a destruição de inocentes em nome do Terror. Mas esse sacrifício egoísta e cruel é a mentira palavrosa do demônio que enlouqueceu o herói fáustico de Thomas Mann. Nesta missa em Clermont-Ferrand o que reencontrei foi a voz suave de um verdadeiro amigo. E a boa nova é que ele vencerá, pois é amor indestrutível.




sábado, 25 de junho de 2016

Orlando



Um poema sobre mistérios conhecidos
Em homenagem à progênie dos bonobos
A celebrar a vitória destes símios
Sobre a violência estúpida dos lobos.

Genes que geraram entre os humanos
A civilização helênica famosa
Onde, em banquetes, o Eros
Que tu amas cantou poesia e prosa.

Sócrates despediu-se de Atenas
Nos braços de Alcibíades, o amado,
Alexandre, preso às coxas de Heféstion,
Conquistou o mundo, enamorado.

Adriano semeou templos, cidades,
Pelas costas do mar Mediterrâneo,
Como honra à morte de Antínoo,
O deus efebo, sagrado eromenos.

E muito além das bordas do Egeu
Brotou o amor de Ganymede e Zeus:
Pelos rumos de Siwa, dois berberes
Cruzaram os desertos de mãos dadas,

Na América viveram os berdaches
De dois-espíritos, homem e mulher,
A sonhar os sonhos de sua tribo,
E a revelar o rumo que um deus quer.

Michelangelo e Da Vinci, pecadores,
Inverteram o Medievo em Arte e Ciência
E verteram seus amores em ternos poemas
Tendo a graça de mancebos como tema.

Noutra era, por Verlaine, Arthur Rimbaud
Incendiou com um zelo iconoclasta
As bibliotecas de regras sobre o amor:
Fogo de escândalo do gênio autodidata

E Marcel Proust ao retomar o Tempo,
Trouxe à luz que esse vício imanente
Não ousa revelar o próprio nome
Mas é ainda a base oculta do Ocidente.

Para André Gide, este amor que era o seu
Não é um vício, mas sim fruto da terra.
Se o grão não morre, e para ele não morreu,
Confere um atávico antídoto à guerra.

O grande Gide acabou excomungado
Da Santa Chiesa que usa a culpa do pecado,
Como mais tarde, o jovem Lorca foi baleado
Feito bicho em algum mato andaluz:

Pelo amor que uniu Pátroclo a Aquiles,
Que inspirou aos artistas e poetas,
Desde muito antes de Alá e Maomé,
Antes mesmo da Bíblia e de Jesus,

Desde a sagrada descendência dos bonobos,
Os avós dos avós dos avós de todos,
Que, ao amarem, distinguiram-se dos lobos
E enraizaram este amor dentro de nós...







sexta-feira, 10 de junho de 2016

olhos de menino

O coração deixou guardado
Em algum quarto escuro do passado
Aqueles olhos tristes de menino
Que derramavam águas doutros tempos.

Que outros tempos? Um garoto apenas
Conhece alguns passos, poucas penas.
Mas eram avatares que brotavam
Dos olhos do menino. Eram eras.

Berberes nos desertos e mesquitas.
Jerusalém de Ouro. Antiga Atenas,
Noturnas bebedeiras pela França.

Pintores espanhóis. Barco de escravos.
Nos olhos do menino em Porto Alegre

A História revivia suas lembranças.










sexta-feira, 27 de maio de 2016

perdido

Aunque sea raro sentirse
Como en casa al ser ajeno,
Así se siente el andante
Por las rutas de Castilla.

Ve paisajes semejantes
A esos que trae adentro.
Partes que eran pedazos
Se hacen uno en el centro.

Es que el andante en la vida,
Siempre fue cisne entre patos,
Y es en los campos de Castilla
Que él por fin ve su retrato.


.

sábado, 21 de maio de 2016

coração

O coração responde ao que vê
Simplesmente com um "por quê ?"
Não ruge mágoas,
Não grita idéias
A tentar entender.

O coração pergunta ao que vê
Apenas: por quê?

É por isto, talvez,
Que o coração
Na sua singeleza
Consiga perceber
O sentido de viver

Na voz da Natureza.