sábado, 7 de novembro de 2020

Lembranças de um guri do Menino Deus

O Menino Deus, lá por 1960, era outra coisa, muito menos sofisticada que hoje. Bairro de famílias de imigrantes portugueses, espanhois, árabes, judeus, poloneses, russos, italianos, alemães...o mundo de pós-guerra a circular pelas ruas. 
Muitos de nós éramos pobres e nossos prazeres eram simples, incluindo o chimarrão compartilhado entre vizinhos nas ruas seguras e tranquilas. No Inverno, fogueiras de São João, e quentão. Procissões com velas acesas até a antiga Igreja do Menino Deus, que naquele tempo era um precioso prédio neo-Gótico. Muitas conversas, aniversários, cães e gatos. 
Naqueles dias, a rua Rodolfo Gomes dividia-se em duas extremidades inimigas: os “de baixo” e os “de cima”. Os “de baixo”, como nossa família, moravam na direção da Avenida Praia de Belas, próximo às margens do rio Guaíba, que depois viemos a saber, é um lago. Os imensos aterramentos que criaram a orla de grandes avenidas, parques e edifícios modernos de hoje ainda não existiam e nós todos, usando câmaras de pneu como boia, usufruíamos do grande rio nos verões. Por outro lado, “os de cima”, que viviam na direção da Avenida Getúlio Vargas e mesmo além, para as bandas da Azenha, eram aqueles esnobes que andavam de nariz empinado. Os rapazes mais velhos achavam motivo para disputas: os “de cima” contra os “de baixo”, mas éramos todos bons vizinhos, "buona gente". 
Toda uma parte desta região do bairro era ainda campo desabitado, cheio de árvores, o qual chamávamos de “a Chácara”. Brincávamos na Chácara e era uma alegria ter um campo livre para correr, junto dos amigos e cuscos. Algo que nunca entendi é porque alguns meninos matavam passarinhos com fundas. Eu era o "estranho no ninho" que coletava gatos e cachorros abandonados e me deliciava em admirar pássaros vivos.
Havia na parte “de cima” da Rodolfo Gomes uma família de alemães, os Vontobel Neugebauer, que criaram uma indústria de chocolate para alegrar nossas vidas e, creio, até hoje existe esta empresa em outra região da cidade. Lembro das barrinhas de chocolate amargo, forradas num envoltório branco com a imagem da Neugebauer estampada. 
Na Avenida Praia de Belas desfrutávamos as piscinas do Grêmio Náutico Gaúcho onde, além de nadar, tínhamos espaço para brincar, conversar com vizinhos, “pular o Carnaval no Clube", tomar Guaraná, Grapette, Fanta e Pepsi-Cola ao sol. Não me perguntem por quê, mas de Coca-Cola ninguém gostava. Todos queriam Pepsi. 
Neste clube, meu irmão Tônio, que era campeão Estadual de Natação (e enlouquecia a mulherada com seu corpaço de atleta) me ensinou a nadar aos 6 anos. Eu treinei Natação desde então e participava de competições e torneios, por estímulo do mano, o que me trazia algum desconforto, pois, por algum motivo congênito, nasci essencialmente avesso à competição. 
Nossa escola, na rua ao lado de casa era a Presidente Roosevelt, colégio excelente que o Brizola nos deixou (além do Ginásio Infante Dom Henrique, de segundo grau, que lhe era acoplado). Nestas escolas aprendi a amar o estudo. Mas queria falar do período em que era muito, mas muito pequeno. Eu era um guri magrinho, de olhos azuis e de cabelos “platinum blond” quase brancos, que mais tarde, por algum motivo, tornaram-se castanhos. Pois tive que enfrentar “bullying” por ser como era devido a uma circunstância histórica. Naquela época, pelo menos para a garotada, a grande ofensa era ser um “alemão-batata”. A segunda grande guerra tornou ser alemão no Brasil algo complicado. O hábito germânico de comer batatas também seria? A verdade é que, sem entender bem do que se tratava, eu ficava chateado por ser um “alemão-batata” embora minha família fosse uma mescla de portugueses e italianos. Tenho lembranças muito precoces, sei lá porquê. 
Lembro-me de, no meu primeiro aniversário, estar no colo da minha mãe no quarto dos pais e ela me mostrar os presentes que eu ganhara. Até hoje reflito sobre este mistério da nossa consciência: como pode ser que, naquele momento, eu era já consciente de mim mesmo, era eu mesmo, tanto quanto agora? O que diferia era um clima de magia e a intensidade das cores e sensações. Lembro-me de uma outra situação em que fui levado, à noite no colo de minha irmã a uma festa numa grande casa que creio existir até hoje na Avenida Getúlio Vargas. Fiquei encantado com a sala tão bonita, seus grandes cortinados e lustres. Eu teria uns dois anos. Recordo que alguém me deu para provar um gole de Champanhe e, em certo momento desabou um forte temporal. Fomos rapidamente para casa quando amansou a chuvarada e ao chegarmos no pátio, vimos que a parreira havia despencado devido ao vento. Abrindo a porta da casa, um sapo entrou na sala e minhas irmãs, ainda garotas, subiram em cima da mesa, aos berros. Ao final, todos riam. Bem, desta situação tragicômica tenho motivos para lembrar, mesmo com dois anos apenas. 
Recordo dos dias em que tive sarampo, sentia-me febril e entendi que a febre me deixava triste e com um sentimento de estranheza. Foi meu primeiro contato pessoal com uma doença e com a relação corpo-mente. E das árvores de Natal montadas com pinheiros verdadeiros, bolas de vidro com coloridos magníficos e velinhas de verdade acesas. 
E o cheiro de minha mãe, sua voz ressoando na caixa torácica enquanto eu estava em seu colo começando a dormir. A imensa intensidade de percepções das crianças. 

Na esquina “de baixo” da Rodolfo Gomes havia uma família de russos cuja filha, Mariana, era minha amiga querida, embora não falasse Português, aliás como os pais, que viviam trancados em seu casarão. Mariana, ao me ver, curvava o corpinho numa saudação delicada em sinal de carinho, me olhava com seus olhinhos azuis e seus cabelos cacheados muito loiros e dizia algumas palavras que eu não entendia. A família, soube depois, havia conseguido escapar da União Soviética. Deviam ser ricos, pois tinham enviado seu dinheiro para um banco em Nova Iorque, para onde se mudariam logo depois. Na despedida, Mariana me trouxe de presente um relógio de bolso, que fui saber mais tarde era de pura prata e com preciosos rubis no interior. Eu, então com 5 ou 6 anos, destruí a tal joia que fazia tique-taque para desvendar-lhe os mecanismos. Deveriam ter-me proibido de mexer, mas...
Meus irmãos, bem mais velhos, sofriam com meus ímpetos criativos: não havia caderno (deles) ou papéis que eu não rabiscasse com desenhos e garatujas. E mesmo paredes, móveis. Eu desenhava meus esboços por todo canto, aliás, como até hoje faço. 
Eu era, de algum modo, filho dos meus pais e dos meus irmãos, por isto, era mimado demais. Nem sempre, porém, era assim. Por exemplo, ao ser levado ao Jardim de Infância, eu sofria muito com o afastamento de casa, e era uma choradeira. Minha mãe foi chamada à escola e envergonhada, me disse: “Ah é? Então agora sou eu que te proíbo de ir à escola!” Pois, diante de tal punição, fiquei temeroso. Olhava, desde este dia, os coleguinhas e os alunos maiores, com seus uniformes e gravata borboleta azul-marinho, carregando livros, portando suas pastas, de banho tomado, camisa branca, calça azul e sapato preto. Olhava-os pela janela, já com inveja, e pensava: “não vou poder ir à escola, não vou poder ir”. Disse, então à minha mãe: “Desculpe, mãe...eu não choro mais no colégio. Quero também ser aluno”. Aprendi que na vida as minhas coisas "eram da minha responsabilidade". E fui, com todo ânimo...No primeiro ano, era muito aplicado, sério, o primeiro da classe, o "como se deve ser". Pois, de repente, me dei conta que eu estava certinho demais e um tanto solitário. Lobo da estepe. Assim, com sete anos percebi que ser “o primeiro” nem sempre é vantagem e que viver envolve também conversar, apreciar estar com os outros, aventurar-se na mágica dos amores, inventar a poesia que pode haver. Viver é também (im)preciso. 
 Fiquei mesmo honrado quando a professora do segundo ano primário disse à minha mãe: “Dona Rosa, seu filho é o primeiro da turma, mas fala nas aulas e faz bagunça com os colegas...”. Assim tem sido desde então.