domingo, 18 de julho de 2010

Facetas do real

Silenciosa caverna, cova,
Paraíso onde enfurnar-se
No qual arqueia-se um teto:
O ancestral útero em disfarce.

Lá fora é frio e há neblinas,
Crianças esmolam nas esquinas,
Ainda, como aqui nos é fadado.
O povaréu desvaira em orgias
De coca, ruído, fumo e álcool,
E há o pivete que nos sequestraria.

Mas cá, aromas de café e pão na mesa,
Um coro entoa Bach para eu ouvir
Falo com Borges, Goethe e Pessoa,
Ou, se quiser, eu sonho Debussy.

Aqui, tomo o Caminho dos Guermantes,
Vou com Marcel redescobrir o Tempo,
Ou eu me lanço em precipício simbolista,
A decifrar, extasiado, a Mallarmé.

Aqui, ouso correr o risco imenso
De amar a vida assim como eu a queria
Posso dizer que te amo, ou o que penso:
Que o Homem é bom, que em tudo há Poesia.









sábado, 17 de julho de 2010

Um sonho

Do tempo, que nasce por que o espaço respira,
Vieste dizer-me que há mais do que eu via.

Estrela vestida de manto açafrão,
Voamos na noite da urbe dormente.

Cruzamos paredes de aço e cimento,
E entramos no Templo da Iniciação.

Falavas no cerne da minha caixa craniana
E era sem palavras que tu me dizias:

"Há um tempo sem tempo além deste tempo
E a vida é mais ampla se a alma se amplia".

Queria voltar contigo no tempo,
Queria manter-me para sempre no Templo,

Mas já era hora de arar, e o sol
Dourava teu manto, e tinhas de ir-te.

E assim tu partiste, e eu só e eu triste,
E eu a buscar te rever toda a vida.

Mas a tua imagem ainda ressoa:
De manto açafrão,
Grande alma, alma boa.


sábado, 3 de julho de 2010

antigo segredo

A vida que flui é a mesma que fica:
A flor que tu vês é uma flor e a Flor.

Os passos que dás são o Rumo e os teus passos
E os teus abraços são uns braços e o Amor.

Há mais que o que vês no que vês ou que és,
Há um fundo sem fundo que é como uma Fé,
Em qualquer momento fluente a passar.
Há todo o mistério do mundo no olhar.

Se olhas o breu que nos encima o céu
Com os olhos de ver já não verás o breu
Mas ninhos de estrelas em púrpura seda
E palcos de vida, e mais seda e mais céus.

E como nos céus, o infinito se esconde
Num grão de poeira, que é imenso qual um céu.

E este é um segredo que emana de tudo:
Se tu queres ver, há que retirar véus.

a gitana

Deixo o olhar preso numa roda de dança
Onde a gitana se enfurna em fundas cavernas
E o fogo crepita no meio de tudo.
Girando e girando, cantando e cantando.
Em torno há a secura de terra crestada
E mil oliveiras, e o breu entre estrelas,
Em torno há a vida e a morte, e em torno
Há todo o silêncio que escuta o cantar.
Perfumes de noite e de terra orvalhada
E o sabor do vinho e o vinho na mente
Ali estou eu num viver diferente,
Mirando a gitana em sua dança fremente.

Eterna memória para sempre vivida.