domingo, 28 de junho de 2009

Velhos amigos



Viemos de onde juntos, em que pátria
Nossos pés iniciaram as pegadas?
Lá ficaram nossas vestes, nossos hinos,
Peculiares sombras desgastadas.

Esquecemo-nos da pátria abandonada,
A convivência antiga se esqueceu,
Mas suaves aromas do passado
Impregnam o novo enigma que sou eu.

Por isto, ao vos rever por esta vida
Sinto-me em casa, e ao estarmos perto
Vivo a emoção de coisa conhecida,

Respiro fundo o aroma de outra brisa,
Frescor de outono suave num deserto.
Ou novo vento que minha nau precisa?
(28jun2009)




domingo, 21 de junho de 2009

Poesia

Às vezes
Sinto-me frágil
Se há pouco estava forte,
Torno-me aflito como se
A minha parte de Infinito
Fosse chegar à finitude e à morte.
E, nesta onda que reflui ao fundo,
Sinto que eu sou só um no mundo
Até onde minha vista alcança.
E permitindo-me tremer nas bases,
Ponho-me a escrever tais frases
Num desespero à beira
Da esperança.




O poeta

Magro poeta, a voz
É o teu músculo.

És teso e intenso,
Infenso à sedução
De uma certeza fácil:
O claro demais cega,
Do justo demais duvidas,
Mas o obscuro ressuscita-te e
É ele que te incita
Ao verso, ao verbo, ao vasto
Poço onde te apossas
Do absurdo não ousado.

Dado que és ao jogo
De tentar saídas nunca tidas
Como tais,
Te lanças neste mergulho
Pelo Novo
No qual tu te transformas
Quando sais


.

Flores de plástico


Gestas na noite a tua cara lavada,
Geres a entrada pela porta estreita.
O teu corpo com o corpo de alguém se deita
E tua alma vai para a rua olhar estrelas.

Livre dos rituais, dos medos e atavismos
Tu te confortas ao cruzar abismos,
Cantando poesia em meio a sismos,
Tempestades, cataclismos.

Mas deixa fluir as águas mansamente,
Deixa o presente apagar o passado, sente
O perfume das manhãs o qual ora não sentes.

Entre tais brumas de noite e de cigarro,
Fog, urbano trago de ilusões
As emoções são fardos mais pesados,
Florações de nada, flores de plástico,
Ácido corrosivo para quem deseja
Algo simples, mais humano.

Tu, ali, conhecedor das modas, dos papos
Infantis das rodas, dos trapos chiques,
Dos chiliques e dos gêneros,
Tu, que já pisaste na areia movediça
Destes jogos efêmeros, olha agora
Para o mar aberto,

Sorri para alguém sem medo,
Fala de ti, desembrulha o segredo.

Sai do degredo da superficialidade
E deita, de alma e corpo, com alguém
De corpo e alma, larga o Andy Warhol
E vai, com Picasso, lançar cor e emoção
Reais nesta cidade de aço, coca e álcool.





Ovo


Imaginada
Imagem, virgem
De vida real, integralmente
Ainda dentro, íntegra
Alma de um teu pensamento,
Aragem filha do interno vento,
Instinto ainda sem intento.
Vage, bale, brilha pequeno,
Bólido distante na abóbada,
Estrela enorme, minúsculo ponto
No firmamento.
Fantasma do que não conheces,
Pérola trancada na concha,
Semente de trigo novo,
O fantástico com que teces
O que te tece:
O ovo.


A Mitologia dos Gregos (K. Kerenyi): 
Nix era "pássaro de negras asas e que, fertilizada pelo vento, concebeu o ovo prateado no infinito útero da escuridão. Deste ovo saiu o filho do vento que sopra, deus de asas douradas, Eros, o deus do amor." 


Noites do Bomfim




Abro as portas a furacões,
Ventos antárticos,
Renovadoras massas polares.
Renovo os ares,
Estou em terra conhecida
Qual se soubesse onde estou.
A noite sonâmbula
Navega por minhas veias.
Sou caminhante
Dos rumos ignotos, sem culpa,
Ou mágoa, ou crime, ou votos
Quaisquer que aprisionem
Coração, sexo e vista.
Olho o que passa,
Vivo o que posso,
Sei o que faço,
Ou não sei tanto assim.
Desconheço-me,
Atingido pelos ventos dos
Deuses polares,
Tomado pela euforia
Da noite do Bonfim.

Noite negra, que envolves violentamente
As ruas normais da cidade,
Transformando-as
Em soturnos guetos, em noturnos becos misteriosos,
Envolve com calma o Bonfim nos teus mistérios,
Transforma a Redenção em Hyde Park imerso em fogs,
A Oswaldo em Soho, promete Londres aos garotos,
E a ancestral descoberta do mundo e do sonho
Aos que aqui já gastaram tantas solas.




A musa





Divina musa,
Donzela dos pés alados,
Das musas de antigos
Poetas,
Tísicos bardos,
Sentas no meu sofá,
Pegas um livro, um cigarro,
E entre baforadas,
Repetes os velhos fados.
Lês algo de Byron,
E mal controlas
O riso disfarçado.
Tosses, e tentas Rimbaud,
O menino endiabrado.
Mas olhas, Musa, para mim
Com uma cara de enfado.
Estas coisas que declamas
Não estão do nosso agrado.

Levantas, arrumando
As leves vestes.
Os teus brancos braços
Se estendem docemente.
Não é magia que fazes
Para mostrar um dos teus dons:
Pegas um disco qualquer
E pões no aparelho de som.
É Caetano. Tu sorris:
-Isto é bom, isto é bem bom.

Enquanto ouvimos acordes
Que iniciam a Vaca Profana,
Tu declaras, discursando:
-Pelos deuses! Tornei-me humana.
E após mais algum tempo
Em que a música nos toma
Beijamo-nos docemente
Eu e tu, na minha cama.




Transgressões



Tenho pranteado bastante
Por força do amor frustrado,
Mas desejo um levante
Do meu lado endiabrado.

Descobrir-me como sou,
Fraco e forte, em dor nascido,
E roubar o fogo dos céus
Que ao Homem é devido.

Sei que não há castigo
Para quem queira possuí-lo;
Quero ter força e tato
Para roubá-lo tranqüilo.

E dane-se a miséria
Do romantismo solitário.
Quero a vida com roupa nova
Guardada no meu armário.

Que se dane, finalmente,
A ordem preconcebida.
A vida é um desafio
E transgredir é a vida.




Palavra e desejo




Dor de querer, dor de amar
Sem ser amado.
Parecemos bicho aprisionado,
Aquele bicho gritando
Diante do abate,
Pedindo vida à Vida
Antes que a Morte o mate.




A morte do amor



Na despedida rumino idéias recorrentes,
Repasso memórias, retenho emoções.
Remoer.

Há ratos metidos nos meus esgotos
Roendo coisas ainda vivas.
Revivo o afeto vulnerável
Com emoção punitiva.

Volto às covas onde agoniza
O amor frustrado.
Fez-se sombrio o que era iluminado.

O Amor é um jovem belo,
Deitado, meio-morto, sobre as pedras
Na caverna lodosa.

E há ratos neste lugar,
Destroçando emoções deliciosas:

Ratos roendo
Rubras rosas.




Separação


Então as almas que,
Amantes, eram fogo,
De repente são só bruma.

A graça dos deuses vai-se
-Fugidia chama-.
Despenca no abismo
A pira incandescente
E esvai-se a brasa
No mar e sua espuma.

Silente, a nova noite
Não repete as frases
Ouvidas da amada criatura.
Não há sonhos, desejo, tortura.
O coração bate quieto,
Devolvido à sua normal
Temperatura.

A vida não dilacera,
A hora é satisfeita,
O amante não amado
Não mais está à espreita.

O corpo esfria, a alma deita
E dorme o sono conhecido.
Retorna ao fundo do peito
O amor daí surgido.

Mas o coração não desespera,
Pois se houve a graça
A graça é verdadeira.
O perfume do amor
Impregna a alma inteira.





Pressentimentos


Pende a mente no fio tenso
Sobre o abismo.

Sou poeta se não penso:
Malabarismo.

Barcos em cais do porto,
Neblinas, amores marinheiros
De Fassbinder.

Ondas quebrando nas pedras,
Vibrações de interiores sismos,
Ideações sem forma: naus
De velas batidas por estranhos ventos
Cuja direção é como o pensamento
De algum deus suspenso
Sobre nuvens.




Noite

Gosto da noite quando principia.
Chega com as mãos quase vazias
Puxando fios de Nada e de estrelas,
E, lentamente, imensidades fia
Só pelo prazer de assim tecê-las.

Gosto do seu misterioso olhar de estranha,
A sempre estranha noite que me cobre
E, sem que eu queira ou saiba, me transforma
Num ser tão misterioso como ela.

                                       

                                          (pintura de Gustave Raynaud, “Noite“)

sábado, 20 de junho de 2009

As chagas


Nada que valha
Mais do que isto:
Ter a navalha do amor
Cravada no peito
Como as chagas do Cristo.
Quisera não ter paixão,
Mas ela vem
E eu não resisto.
Tenho cravada no peito
A navalha do amor,
Eu desisto.
Mesmo se indo a paixão,
Na solidão, eu insisto:
Se surge na minha vista
Alguma feição
Que me toque a emoção
Eu invisto
E recoloco a navalha
No centro do peito,
Sem saber se é falha
A emoção, eu a aceito,
Ainda que não valha
O que a ilusão diz
Que é perfeito,
Eu sei que algo de bom
Deve vir disto:
Sentir a navalha
Do amor cravada
No peito, como as chagas
Do Cristo.




Sobre Morte em Veneza



Prisioneiro entre o sol e o teu amor sincero
Sou, às vezes, uma chaga na pele do mundo,
Por onde purga o magma, e eu me abrindo.
Eu, que já não creio na poesia do menino lindo.
Eu, que fui escravo do estético dogma,
Sei que o espiritual nisto esconde
O simples desejo, e isto é belo
Desde que se saiba o que o sacia.

E todo o lirismo romântico, o Idealismo
Alemão, não conseguem disfarçar
A noção óbvia de um tesão.

Amo a beleza, amo-a agora menos servilmente.
Prisioneiro do amor sincero sei
Que a beleza também mente.




Mirada



Inigualável par de olhos
Negros:
Profundos, sombrios vales,
Frescos rios, nuvens
Estelares, arabescos,
Danças de bailarinas árabes,
Flamenco,
O teu olhar de Espanha à noite
E eu o comendo.

Eu te comendo
De tanto olhar
Que eu entendo
Porque é oblíquo o teu olhar
E exíguo em tempo.
É só um flerte,
Algo no ar,
De um segundo.

Mas como é enorme
O teu olhar
E como é fundo.




Caminhos de Porto Alegre




O rio espraia-se
E espelha
O sol de um Apolo gaucho.

Frescor de selva
Em Porto Alegre.
Quase em pleno centro:
Redenção.

Sou como antes
Menino incauto e inculto,
Com rompantes de poesia
E arte transbordando.

Talvez seja feliz este momento,
Tranqüila amplidão de mente.

Só sei que ando em Porto Alegre
E é um dia claro.
A vida não parou e eu não páro.

É isto simplesmente.



A ausência



Palavras permeiam meu sono,
Vagueiam doidas, divas vãs da noite,
E, sem divã, na cama, sem um coito,
Fico sentado como em um trono.

As palavras vêm livres e ardentes,
São Solidão, vultos, fantasmas,
Anjos, pais e mães, e outras gentes,
Que estão falando pela minha casa.

Sempre voltada para uma janela,
Tua figura bela está trancada,
Osso entalado na garganta, cela.

Estas palavras são tua voz calada.





Transas



Leve, vou ao mar
Que há dentro de mim.
Livre, vôo no ar:
Sou serafim.

Liso, o teu corpo,
O teu corpo morno.
Sinto e já não penso,
Simplesmente sinto.

Fico feito a longa luz da noite,
Aureolando o teu sexo com neons.




Fogo e vento

Tenho nas carnes fogo vivo,
Nas carnes freme meu fogo,
- Febre, tontura, arrepio -,
Um ardor de uivo de lobo.
Um bailaor flamenco devo
Em outra vida ter sido,
Um menestrel medievo
Em outro tempo esquecido.
Um caminhante de desertos,
Nômade, a esperar ter por perto
O corpo de qualquer um.

Tenho na alma o vento
Que vem de lá não sei onde,
E que traz o pensamento
Com que a alma me responde.
Devo ter sido algum monge
Aprisionado em mosteiro
Olhando a vida de longe
E rezando o tempo inteiro.
Algum tibetano velho,
Ou pregador de Evangelho,
Evitando amar outro alguém.

Este fogo e tal vento
Como uní-los a contento
Sem machucar a ninguém?

Lava

A poesia sulca a terra
E vai tão fundo
Que chega ao magma do mundo
Trazendo afora o sangue das estrelas.

E assim, sentindo
A força que tememos,
Um fogaréu que é nosso
E não sabemos,
Escrevemos como loucos
As palavras,
Mesmo sabendo que é pouco
O que dizemos
Deste fundo que há no mundo
E não vemos
Fazemos odes à lava.

Mas nem sempre a poesia
A terra cava.
Ela cava quando quer.

E o poeta, então,
É o corpo
Que a poesia
Desnuda, desbrava,

Ou somente
Um fecho-éclair?


(Ilustração colagem do autor: poeta fecho-éclair)


Em torno do Flamenco



Estou marcado de morte
Se me encontrar contigo.

Chamem os matadores!

Que venha o pai com o chicote,
E a mãe afogada em lágrimas,
Os vizinhos e o escândalo,
Que vou me encontrar contigo.

Que venha a ira de Deus,
Os deuses do Olimpo venham
Pois eu roubei o fogo dos céus.

Eu vou me encontrar contigo.

Que venham o medo e a vergonha,
Que às 11 eu estarei contigo,
Que venham as Fúrias e as feras
Às 11, amor. Espera....




Da morte



A morte abarca
O mar e a barca.
A vida é que ata
Os fios desta rede.

A morte é uma teia,
A vida é uma sede.

O mar lentamente
Reflui ao inverso.
A mente é a vida,
A morte é o disperso.

A morte é um rombo
Na linha do verso.




Pampeana

Ateia-se o fogo de chão.
Na noite fria,
Cercados de campo
Os homens
Silentes
Parecem não mais ser gente,
Só parte da imensidão.

Ventos antárticos minuanos
Murmuram lamentos gitanos.

Os animais se aquietam,
Não mais desejando nada.
É noite no pampa.
Enorme abóbada
Estrelada.

Campo frio, calor das brasas,
É estranha a vida de quem tem
A imensidão como casa.

Alguém canta uma cantiga
Que ouviu lá não sei onde.
(Canto de tempos passados).
O som do minuano responde.

Nada se pensa enquanto o mate
É passado de mão em mão.
A sabedoria é sorvida
Com silêncio da solidão.


Alma madrileña

Minha alma é madrileña,
Noturna freqüentadora
De cafés e antigos bares,
Boêmia alma de inverno,
Alma de outros lugares.
Minha alma é sevillana,
Gitana mulher dançando,
Em torno de uma fogueira
Numa noite de sexta-feira,
Cantando.

Jamón crudo, vino, tortilla,
Almodovar demonstrando
Que Madri é uma beleza,
Cidade de mil pecados,
Mas tão humana e tão densa
Que chega a ter inocência
E os erros perdoados.

Fogos carnais madrileños,
Paixões vividas no escuro,
Espanha - mulher, grandes seios,
Ainda árabe e intensa.
Madri é a vida para fora
A que ama e que chora,
Mas que se encontra na dança.



Falo do Egeu



O mar Egeu
Busca no breu
Da profundeza
O violáceo tom
De sua beleza
Para imitar
O Céu.
Cobre-se
De ondas
E de espumas,
Veludo azul
Singrado
Por escunas,
Sonhado
E sonhando.
O mar Egeu
É eterno menino
Brincando
Com conchas
E em cavernas
Rochosas.
Homem viril
Vestido
Com roupas
Vaporosas.




amor inexato



Amo-te inexato,
Como uma memória.
Lusco-fusco de um sol
Que vai descendo.
Amo-te
Lembrado.

Amo-te intacto,
Como algo presente.
Realidade humana
De erros tentados.

Amo-te, ideal
De algo nunca sido,
Primeiros minutos
Do melhor dos dias,
Fonte de indagações e
De ações heróicas.

Amo-te de verdade
E em fantasias.

Amo-te, estranho
E desadaptado,
Em triste som
De tangos e de fados,
E amo-te, inteiro,
O último e o primeiro
Dos meus amores
Mais amados.

Amo-te, alegre,
Com poesia.



Sina



Por algum ditame das estrelas,
Algum desígnio divino,
Alguma trama do destino,
Surgimos assim.

Por alguma profecia celestina,
Por uma estranha sina,
Nascemos assim.

Por alguma mutação genética,
Ou ação familiar anti-ética,
Ou uma floração estética,
Somos assim.

Por algum cochilo divino
Ou por sua tacada mais certa,
Surgimos assim
Com esta alma incerta.

Por uma praga maldita,
Ou bendita coincidência
Nascemos assim:
Sem inocência.




Transe natural


Ritmo no silêncio do quarto.
A voz interior, a dança,
No teclado do computador
Me alcança,
E palavras surgem de repente,
Frases inteiras presentes.

Nada químico excita minha alma,
Nada químico de fora, porque dentro
As substâncias cerebrais
Misturam-se aos poucos
Dando voz com palavras
A impulsos loucos
Que todos têm em si,
Porque eu não os teria?

Química natural de um transe em lucidez
Que faz haver palavra onde o vazio havia,
Que faz haver um ritmo no silêncio inglês.



Sou do sul

Sou do sul, o inverno inverso,
Singular e plural, urbano e rural,
Prosa e verso.
Sou do sul, enigma a esmo.
Eu tento a resposta e a questão
Sou eu mesmo:
Sou o igual e o diverso
Do povo que canta e dança
Em atávica fantasia,
Mas meu canto é estranho
Ao cantar que contagia
Ancas e pernas:
Meu cantar tem nostalgia
De coisas mais ternas.
A poesia que trago
Tem um gosto doce e amargo
De tango e cominho.
Canta em mim a voz cigana,
O arrepio
Da alma agreste
Civilizada por um fio,
Civilizada
Por um italiano bravio,
Um negro gentil,
Um alemão que fugiu,
Um espanhol em seu cio,
Entre índios que fizeram catedrais
E falaram latim.
Sou do sul, porque senti
Na década de setenta
Um fervor de guri
Pelas coisas sagradas
Do paralelo trinta.
Ser do sul não se inventa:
É - se
E não serve
Complicar nossa fala
Com outros erres e esses.



Ir-se


Dentro da tarde gris
Despejo meu coração,
Vinho na taça.

Sentimento e emoção
Dizem que sou feliz
E o tempo passa.

Lento, o meu pensar
É uma orla de mar.
Um barco seguindo embora.
Quem fica não ri nem chora:
Sabe o porquê
De haver um ir-se na vida.
Há sempre uma despedida.
Assim foi e assim é.

Mas enquanto o instante
Instala
Seus móveis na minha sala
Uso-os
Porque são meus,
Até que, após algum tempo,
Serei eu a ir embora
Ninguém sorri, ninguém chora
Quando eu disser adeus.



o cio de cada um



O meu amor
É maior
Que um amor.
Amar-te
Não é tudo:
É parte.

Se partes
Me parto
Em pedaços,
Mas junto
Com os braços
As partes
Num parto.
Se vais
Me deixo
Morrer
Por algumas horas
Mas, se a alma
Chora
O espírito entende,
E a vida
Reacende
Sua eterna chama:
Meu corpo
Ainda vive,
Minha alma
Ainda ama
E o ardor
Que eu tive
Por ti nesta cama
É meu,
É uma chama
No escuro
De breu.
Se partes
Não fico vazio,
Existe o meu cio,
Então existo eu.



Desejos





O dia anseia pela lua
E a noite tem fome de dia.

A mente procura consciência
E a consciência quer poesia.

E a poesia deseja...
O que deseja a poesia?





Lorca

Tenho nas mãos sementes
De ouro
E na alma, cios lunares
Desde que quebrei
A ânfora antiga
E soube dos seus
Segredos.
E os segredos
Levam à altura
E aos fuzis.
Lorca que o diga:
Os segredos escondidos
São os que o mundo
Não quis.

Poético nome, Lorca.
Lembra-me amores
E bala e cova e forca
E a eterna desconfiança
Da força quanto à Arte.
Força e forca,
Lorca e poesia.
Segredos desnudados
São crianças
Brincando sem vergonha
Em qualquer parte.

Não partisse a ânfora
E seria, então, normal,
Respeitados segredos.
E não que houvesse
A idéia de rompê-la.
Porque havia segredos
Quebrei - a.
E ao ver, Lorca,
O enredo
Soube da força,
Da forca e dos fuzis
Que guardam
A sete chaves
O segredo
Que pode fazer de alguém
Alguém feliz.



Do poetar


Imagem medonha e suave
De um vulcão cuspindo brasa:
A poesia lhe chegava como um susto
- soluço, suspiro, dor, espanto -.
Cavalos fugidos da cocheira
Correndo, livres, no campo.

Via-se, trêmulo, mirando
Cadáveres de amores numa tela
Interior, que era outra vida
Repetindo sua vida inteira nela.

A roda gigante lhe trazia
Outra vez o que o Novo ocultava.
A poesia era memória transbordando
-Velho vulcão gerando a nova lava-.





carnaval



Um hilário enredo entorta a História.

Batendo latas, se remontam as glórias
Da inglória pátria de tardias bacantes.

Confundindo-se a vida com a poesia,
Desgraça se traveste de alegria:

Redenção de escravos delirantes.



Sobre o criador



Criador e criatura

Nasces em mim
Como um filho,
Criador.
Nasces de mim
Como obra,
Meu autor.
E isto depois
De tanta vida,
Tu que és o meu
Princípio.
Eu te encontro
No ápice do monte
Ao abordar
O precipício.
E tu és tão fácil,
Imaginava-te
O Difícil.
Tantas regras criei
E tu me chegas solto,
Pelo mundo todo andei
Mas é a mim mesmo que volto
E te encontro
Em minha casa.
Subindo ao céu
Sem uma asa,
Eu desço ao fundo.
Criador
Das possibilidades,
Autor dos sonhos,
Do meu mundo,
Sonho contigo
Desde o berço,
E tu, viajante,
Que eu pensava
Estar distante
Estavas aqui
Desde o começo.



A presença

Só Deus é certeza.
Alma
Da matéria arcaica,
Alma do negro-púrpura
Do espaço,
E das estrelas, laço
Entre o que vive
E a pedra.
Deus poeta,
Produzindo pérolas,
Artista nobre
Arquitetando estrelas
E que nem sabe
De religiões.
Deus alma - menina
Do Universo
A nós também
Tem como berço:
Nossa vida
É esse Deus amando.




Armadilha


A vida é uma armadilha.
Em ilha ou continente
Seguimos uma trilha
E eis que, de repente,
Nos prende o mistério,
Eterno caçador.

A vida é o seu império,
Ele é o nosso senhor.

Se tentas não ser caçado
Apegando-te ao banal
És haste, és pedra, és prego,
Engrenagem, massa, animal.

Mas se teus olhos já vêem
Este mistério ocultado,
Já que este mistério vem
Acompanhando-te ao lado,
Se tu és afeito às brumas,
Às luas que todos sentem
E ao fogo, se te acostumas
A viver só, entre ausentes,
Se teus olhos já espelham
A face deste mistério
E é sério o teu empenho
De ser do mundo e etéreo
(Se ages lúcido e louco,
Pés na terra e alma em estrelas),
Então a trilha é tua vida,
Tu és ilha e continente,
És a caça e o caçador,
És o mistério consciente:

És o teu próprio Senhor.




Antes


Antes que a face faça-se sombria
E o tempo marque a pele com as unhas
E os olhos deixem escapar os sonhos...

Antes que o coração perca o compasso
Tornando o corpo casa abandonada,
Antes que o Todo se refunda ao Nada,
Vive a alegria de um primeiro dia.

A ave frágil pode voar agora,
Tão leve sono despertar na hora
Ou antes desta num instante estranho.

Tamanho bem merece ser amado
Antes que a Hora tenha te chamado,
Para que o Sonho seja mais que um sonho.




catavento

A noite retém restos da tarde
Como memória adormecendo.
A ampla noite ao dia invade,
O azul purpúreo envolve a tarde
Que já o esperava, evanescendo.

E a brisa fresca lentamente aflora
De alguma fria caverna ou mar distante,
Ou desce a brisa da alta cordilheira
E, balançando os galhos da figueira,
Cresce em vento num instante.

A cidade silencia, sibila o vento
Nas frestas e janelas mal fechadas,
Sussurra o som das distâncias viajadas
Das montanhas à urbe de cimento.

O som noturno é um lamento,
Uivo soando enorme pelo pampa
Com a pompa de um coro em andamento:
Ritmo gaudério que a noite viva canta.

Dorme a cidade,
O pampa canta ao vento.






https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEi3FdX2jPQyNcdbpPqNY8hL9J8EyFPyxuyiK7k14sF5knJo_pKDbWOIxt8SV2GHUrDiX1RtXaNgHOPHFXhRkJd9SNunyWkuQDjKBD-v54tohgI_U6z2SPkLm-tUca9ECMP4qqEy7GapaXY/s400/Imagem+083.jpg



O fogo dos céus

Quem cuida a chama dos céus
Se há vento pelos espaços?
O gaúcho sabe dos laços
Entre o seu fogo e o de Deus.


O pampa agita-se ao vento
E no fogo a brasa crepita.
Nos céus brilham fagulhas
De uma fogueira infinita.




Pop


O pop é pobre.

Usa as regras da Arte
Como disfarce do podre.

Acha beleza na blusa,
No jeans, na lata sem alma,
Tem como musa Naomi
Que, como a lata, é Campbell.

Gente de marca, de alma
Sem griffe , musculada
Gente em crise,
Gente anabolizada.

Gente que ri ante as câmeras
Antecâmaras da fama
(Câmaras de gás e de nada).

Gente que se corrompe
Para ser alguém um dia,
Transformando-se no avesso
De um verso que escreveria.

Gente que se engalfinha
Por migalhas de prestígio:
Fagulhas de uma fogueira
Acendida sobre o lixo.

Aparências e apetites
Se mesclam num lamaçal:
Miseráveis, vestindo Armani,
Com prestígio mundial.

Travestis da consciência
Entronam-se com inocência
No império Coca-Cola,
Tudo é coca e nada cola:
Tudo rui pois nada é essência,
Tudo tomba sem sacrifício
Com o sorriso perfeito
De um comercial de dentifrício.




Outras vidas


Tribo
Tenho exposta na alma
Uma paisagem de antes:
A tribo berber vagando
Pelo deserto de bronze.

Guizos nas mãos das mulheres,
Gritos de festa entre os homens.
Eu, entre a atávica tribo,
Sem pensamento, vagando.

Veio de onde a imagem,
Veio porque a vertigem
Que fez de um sonho viagem
Ao país de minhas origens?

Memórias da minha alma,
Pedaços deixados quais rastros
Impregnando de árabe
A pele da minha carne.

(O amor pelo longo vento,
O ardor do verso nas veias,
A idéia como uma alfanje
Das lutas sobre as areias.

E esta voz, voz cigana,
Em canto quase dorido,
Que louva ao deus a quem ama,
Soando no meu ouvido...)

Tanto tempo se passou
Desde esta marcha africana,
Mas o deserto ficou
Fixado na pele qual escama.

O deserto e o céu em chamas...


Sonho
Vejo-te, ainda, cúpula de ouro
Encimando o templo enorme:
O templo de pedras e o muro
Onde se lamenta o Homem.

Era manhã de que século
Aquela na qual eu te vi ?
E era eu árabe ou filho
Das gerações de Davi?

Não importa...Sei que és
Tangível na minha memória:
Um fragmento da história
Nos porões desta alma viva.

Milênios já se somaram
Àquela outra antiga idade
E teu brilho dourado ainda invade
As minhas horas sombrias.

Que o poético Alá te proteja,
E Javé Elohim diga amém,
Cúpula dourada que beija
O céu de Jerusalém.




Memória e vida

Digo ao tempo: aqui vivi,
Por estas ruas caminhei sonhando
Com outras mais antigas,
Nauta entre vagalhões de tempo.

Levei o fogo aonde pude,
Poeta que o havia roubado,
E confesso que meu fígado,
Mil vezes refiz:
Eu, o acorrentado,
Eu, a ave que castiga.

E vi tudo que podia,
Sábio cego, Édipo forte:
Imensa e frágil viga,
Feito vida suportando a morte.

Remonto o vivido:
Vida imensa em  minúscula vida.
Cada minuto não cabe em si mesmo
E uma cola mágica flui dos momentos,
Selando pacto
Entre os intervalos.

Tudo é intenso, tudo é fundo
Tudo de mim flui pelas veias
E eu renasço nos frutos da parreira.

Eu te olho, tempo, fascinado
Por ainda poder te ter,
Fruindo a vida verdadeira:
Corto o seu talo
E ponho-me a sorver.



Brasilidades


Vergo às vezes.
Sou contêiner de melancolias de tanto sonho
Enclausurado.
Sebastianista, vislumbrei a idéia de um brasil sofisticado
Em tudo que um dia tenha feito,
Seja de música, de povo e de pecado.
Mas se a semana de vinte e dois
Nos libertou
Do jugo europeu
Lançou-nos no outro, americano,
Mais feio, funk, e o que era
Se perdeu.
Colonialismo?
Tanto quanto o que agora
Impera, inspirando gangues ao ataque,
Ou colocando o atabaque além
Do cravo de Bach.



Do amor


O amor é um menino
Cantando na vida
Um estranho hino:
Tudo se pode,
Tudo se espera...

O amor é menina
Dançando na vida
Uma dança gitana,
Envolta na dança
A menina se encanta
E se encontra
Pois ama.

O amor somos nós,
Meninos crescidos
Dançando e cantando
Num estranho destino:

De sermos amantes
Vivendo na vida
Um amor diferente.

Mas tudo se pode,
E tudo se espera...




Vozes

Mercedes ao fundo:
Voz de flauta de bambu.
Mercedes canta Facundo
Em milonga branca e azul.

Mercedes é ampla, pampeana
E de estatura andina.
A voz de Elis era faca
De água cristalina.
Elis cantou
Atahualpa,
E Violeta quase divina.

Saudades de Elis Regina...




Sevilha



A Espanha espalha-se
Do Saara ao Cantábrico,
Do brio mouro amordaçado
Aos ares frios do Norte.
Na terra crestada
Pelo sol sevilhano
Laranjeiras ladeiam ruas
E as ruas são ramos
De algum tronco
Ou sonho,
No desenho fractal
Dos bairros da Judiaria.
A catedral recende
À mirra e lá repousa
O ouro inca
E o peso dos gritos
Infindáveis de reis índios
Aprisionados e mortos
E o peso de todos os sexos
Afrontados pelo horror
Católico,
A não ser,
A não ser,
A não ser
Pelo átrio perfumado
Onde há ainda a leveza
De um árabe menino,
Berber arquitetando
Alcazares
E escrevendo poesia
Em pedra:
Ancestral grafitti.



Noite arcaica

Uma roxa seda vem flutuando
Desde o alto do céu ao horizonte
E o violáceo, em negro se tornando,
Transforma o ver no oposto, num instante.

Mas não há negrume absoluto e
O enorme breu se borda com diamantes,
O infinito espaço se dá ao diminuto
Mundo, oferecendo tentações distantes.

O pensador dispensa o livro antigo
E olha o céu, objeto pesquisado.
Quer decifrar o mapa que o Amigo
Deixou no negro véu bordado.

O poeta acorda da diurna sesta,
( A noite é a vida deste bardo ),
E ele transmuta o negror em festa:
É a voz da noite o seu cantar ritmado.

As gentes sonham em quietos quartos,
Ouvem mensagens pela noite dadas,
O descobrir-se de almas são quais partos
Multiplicando idéias e estradas.

E há amores loucos, há gemidos,
Sussurros roucos de milhões de amantes:
A noite é amiga dos sentidos,
Enche de fogo os dias entediantes.

A seda violácea se esfumaça,
Brilha ainda mais diamante, e prata
Surge em fímbrias. O dia se dilata
Enquanto a antiga noite passa.




Eu e a poesia


De onde vem este passado vago
Que desperta parábolas e idéias:
Vinho da vida, ou apenas trago
De aguardentes coisas velhas?

Coisa de insano ou coisa de poeta
Ter esta alma inflada pela Chama:
Grande balão voando sem ter meta,
Estranho amor que ama porque ama.

Não sei...apenas sinto pensamentos
Roçando, em fluxo acelerado,
Minha cabeleira feito estranho vento.

Fora da vida em que movo e atuo
A poesia aflora livremente.
O meu monólogo, em verdade, é um duo.



Homem e Pampa

O pampa, verde e enorme
É linha reta, horizonte
E a alma do caminhante
É com o pampa conforme:

Campo fértil, grande alma,
Vento de longas distâncias,
O amor do homem e suas ânsias,
A tempestade e a calma.

Homem agreste e sentindo
O poema que vai surgindo
À medida que ele se move.

É como se sua alegria
Fosse o sol claro do dia,
Seu pranto, a chuva que chove.





domingo, 14 de junho de 2009

A primeira nota


Tensa, a corda soa com o vento.
Vive o ritmo do puro som
A corda acesa.
Festeja-se o movimento
Como o primeiro:
Universo parindo beleza.

Tua voz soa às vezes com o pensamento
Num estranho ritmo de melancolia.
Não há festa. Tudo já foi dito.
Há tristeza no Universo que nascia.

Mas, às vezes, tua voz é alegria,
Universo brotado, big bang no momento.
Tudo nasce de novo, é o primeiro dia,
A primeira nota, o primeiro intento.