domingo, 31 de agosto de 2014

trovinha (ou “As projeções“)


Frequentemente
Escuto alguém
Que não age bem
Dizendo: “a gente
é assim, ou assado“
Incluindo todo mundo
No seu modo de agir errado...

Porém,

Este tipo indecente
Esconde o fato
De  que o problema
Não é a gente,
Mas ele, o agente
Que acusa e mente
Para se ver justificado.





quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Puer aeternus II


Aos poucos se escuta
No silêncio do ar
Um piado de ave,
Um frêmito suave,
Uma voz cristalina,
Duas vozes, violino,
Pianissimo, piano,
Forte, fortissimo,
Coral numa nave
A entoar sinfonia
E aos poucos se amplia
Cantando poesia
Que o tempo compôs.
Tudo, então, canta.
O mundo é a garganta.

Quem rege a orquestra
Que cala o silêncio,
Unindo fragmentos
Num círculo imenso,
Que doma o ruído
A torná-lo harmonia?

Quem sonha o sonho
Que a letra relata,
Ou é a sarça ardente
No som que arrebata?

Quem traz a magia
Inocente da arte,
Partindo do Nada
A nada buscando,
Sem nada querer,
Pelo puro prazer
De quem ama,
Ou brinca, ou dança?

Quem seria, senão
A interna criança?



domingo, 24 de agosto de 2014

voltar


Homenagem à avó Maria Rosa Januário dos Santos

Voltar ao teu Portugal, Maria,
como de lá vieste:
olhando o mar como quem olha
o Céu,
Olhando o céu como quem olha o Lar.

Voltar a Portugal que nos dói
de saudade,
A saudade é a casa a nos chamar,
E o sonho de todo navegante
É, ao fim, voltar.

Voltar a Portugal
como se canta um fado.
Se o Fado humano é aventurar, 
havendo a meta alcançado,
o fado é a Portugal
voltar.








terça-feira, 19 de agosto de 2014

as perdas


Paizinho era o meu heroi, meu amigo. Quando podia estava ao meu lado, fazendo carinhos, conversando comigo (achando que eu não entendia). Eu mexia a cauda, rebolava, sorria do meu jeito, rosnava...e paizinho sorria. Às vezes ria muito das minhas peripécias, dos meus grunhidos, dos meus uivos quando ele repetia umas palavras para provocá-los. As saídas e chegadas de paizinho eram o relógio da minha vida. Eu ficava esperando o dia todo para sentir aquele cheiro, ouvir aqueles passos lá longe, na esquina, aproximando-se da casa. Paizinho chegando, paizinho chegando. Eu já abanava o rabo quando o portão se abria e quando a chave girava na fechadura era a alegria total, a alegria maior...Paizinho entendia, de algum modo o que eu lhe dizia. Saíamos a andar juntos pela quadra, eu me aliviava, olhávamos as pessoas, eu brincava um pouco com outros cachorrinhos. Paizinho sorria e conversava com seus semelhantes, que nos amavam e cuidavam. E eu era feliz. Eu era o mais feliz dos bichos.
Até que um dia, num passeio de automóvel, paizinho abriu a porta e eu, sei lá porque saí correndo, ansioso em desabalada carreira...ainda ouvi a voz de paizinho que tentava me pegar: Tintim! Tintim! Volta aqui...A voz se apagou e um ruído enorme de automóveis e vozes surgiu. Ruído terrível que eu jamais ouvia quando estava com paizinho. Continuei correndo por medo, por pânico, correndo, correndo...até que não vi mais edifícios, só campo. Era noite na estrada desconhecida. E eu pensava: onde está paizinho? Quando ele virá me buscar? Num instante, desesperado, cruzei a estrada e uma máquina veloz quase me mata. Sobrevivi, machucando minha pata. Eu gemia enquanto corria pela estrada, gemia tentando dizer, em vão, “paizinho“. Dormi exausto, cão sem dono, em algum canto, com fome. Os cheiros conhecidos haviam sumido e tudo era o que nunca havia sido: vazio imenso.
Quando o sol se mostrou, segui um pouco mais, até chegar diante de uma casa de onde vinha um delicioso cheiro de alimento, como o café da manhã de paizinho. Uma mulher saiu para o pátio e me viu ali sozinho, tremendo.
-Vem ver, João, que cachorrinho lindo no pátio...acho que está ferido. Perdido...
João saiu da casa, me olhou com desagrado e respondeu:
-Deixa de arranjar encrenca, Maria...não quero me incomodar com outro bicho!
-Mas olha só, João, o olhar da criatura...parece estar pedindo ajuda. Sabe-se lá de onde veio...
-Ainda mais isto...tu pegas o bicho e depois vem alguém te chamar de ladra...ladrona de cachorro. Não quero bicho aqui em casa.
-João, quem cuida sou eu...e se alguém disser que o Pitoco é dele...eu devolvo.
-Que Pitoco?
-É este o nome dele: Pitoco.
-Está bem, mas não quero ele dentro da casa. Deixa no pátio para afastar ladrão.
-Afastar ladrão um bichinho destes...
-Afastando ladrão ou não, fica na rua...
Maria se aproximou de mim, respeitando o meu medo, e devagarinho me tocou, acarinhou minha cabeça, e levantou minha pata machucada. Gemi e ela disse:
-Pobrezinho, parece que entende tudo.
Nos próximos dias, Maria veio no pátio e junto com a comida me fez curativos.
Eu fui lentamente melhorando. Mas todas as noites sonhava com paizinho. Ele vinha me encontrar nos sonhos, me buscava, caminhávamos pelas quadras conhecidas, ele sorria, eu brincava, uivava, e ele ria. E me fazia carinhos. Eu chorava de mansinho ao despertar. E Maria às vezes dizia a João:
-Que engraçado, este bicho parece que sonha, que fala dormindo.
-Deixa de bobagem, Maria. É só um cachorro.
Os meses, os anos, passaram e...lentamente paizinho foi sumindo, esfumaçando-se...lentamente, lentamente. Só às vezes eu sonhava, sempre menos, sempre menos...Eu já era um cão velho, meio quieto, marcado pelas feridas das cercas, e do tempo.

Naquela manhã João liga o carro, Maria entra e diz:
-Vamos passear, Pitoco.
Meio assustado, movi a cauda e sentei no banco do carro. Janela aberta, fiquei sentindo o vento entrar e balancar minhas orelhas enquanto o automóvel se movia cada vez mais veloz. Fechava os olhos e inspirava o ar, sentindo o cheiro das ruas. Até que o carro parou e chegamos a um parque...a um parque que eu pareci reconhecer...caminhamos na direção de um recanto que eu reconhecia, sim eu reconhecia do tempo em que era um cachorrinho. E, surpreendido, senti no ar um cheiro que parecia morto, como as memórias mais preciosas se tornam. O cheiro de paizinho. Ele estava por ali, agora. Gritei para Maria, como pude, lhe dizendo que eu havia chegado em casa, que paizinho estava por ali, que eu era de novo aquele cachorrinho menino, perto de seu único dono. Meu coração batia sem controle, meu peito estourava de emoção. Gritei, lati, uivei...dando voltas naquele espaço onde sentia o cheiro do meu dono.
Maria me olhava assustada:
-O que há com o Pitoco?
- Vê se faz este cachorro parar de fazer escândalo, Maria. Está assustando as pessoas.
-Ele está querendo dizer algo.
-Não seja boba, Maria. Cachorro não fala.
João me pegou no colo, me deu um tapa e disse:
-Calado, cachorro. Vamos, mulher.

Fui levado assim daquele lugar que era o meu e vi com assombro e sem poder mais gritar um senhor com a cara parecida com paizinho, logo ali. Ele sorria, e ria, com as estrepolias de um cachorrinho pequeno.


segunda-feira, 4 de agosto de 2014

o perigo dos ideais


O homem tem no íntimo a visão do que há de ser,
E quem compreende o silêncio lá do fundo pode ver.

Mas, atenção!: a fruta rara que o futuro nos reserva
Se vem ao mundo fora de hora é a venenosa erva
Que incapacita a criatura de aceitar a realidade,
E a faz rígida, cruel, serva do ideal que a invade,
Capaz de matar pela paixão de um mundo sem defeito,
Cindir a tribo, destruir o germe do amanhã ainda imperfeito.

A percepção do ideal é uma faca de dois gumes:
Ou nos faz trazer ao mundo o céu que habita nosso peito,

Ou nos empurra aos abismos ao confundi-los com o cume.





Munchen