sábado, 22 de agosto de 2020

Criança-objeto

Fiquei surpreso em relação ao caso da menina brasileira grávida aos 10 anos. Não pela questão da necessidade óbvia de aborto até pelo risco de vida de ser parturiente nesta idade. A reação estúpida em relação à interrupção da gravidez vinda dos fanáticos religiosos não me surpreendeu. É de esperar.
O verdadeiro drama permaneceu obscuro e a lição principal deste caso não foi aprendida.
Explico: em 1993 eu criei o Grupo de Proteção à Criança e ao Adolescente do HCR junto a uma equipe multiprofissional. Até 2015, quando vim para Portugal, atendemos dezenas de casos de abuso sexual em meninas e meninos, além de violência. A primeira lição, já descrita em literatura, e observada na prática, incluindo este caso é:
- o abuso sexual de menores, incluindo bebês, ocorre, geralmente, no contexto familiar: avô, padrasto, pai, tio. Não são estranhos. Neste caso, foi um tio e o avô.
A segunda lição:
-frequentemente, a mãe ou a avó cuidadoras, tem conhecimento do que se passa e mantêm o “segredo familiar”, para evitar a prisão do abusador (eventualmente para manter a fonte de sustento familiar).
A terceira, esta de característica bem brasileira é:
-depois de muita luta, com apoio do Ministério Público, conseguíamos isolar a criança e protegê-la, esperando que a justiça se encarregasse do(s) parente(s) abusador(es). Mas, qual não era nossa surpresa, ao ver que sempre um juiz “progressista, com fé na pessoa e defendendo o direito do cidadão” restituía a menina ou o menino, ao “sagrado” ambiente do lar, para que o abusador, um psicopata irrecuperável, voltasse a conviver e “proteger” sua vítima. Foram anos disto.
E quando ouvi gente como o sr. Paulo Paim, do PT, afirmar que “todo o infrator, incluindo um psicopata, merece uma segunda chance” (talvez se referindo ao chefão de seu bando), quando ouvia a doida Maria do Rosário defender meliantes e traficantes (outros contumazes abusadores de crianças e adolescentes nos bairros pobres), quando vi a campanha em defesa da pedofilia nas redes sociais e na TV (vide o ex-BBB Jean Willis, confundindo pedofilia com direitos dos homoafetivos) algo se quebrou dentro de mim e eu resolvi abandonar o barco. Aposentar, sair do país. Muito nos desgastamos, a equipe e eu, vendo a Injustiça contra os menores ser a vitória dos inescrupulosos. Algum de vocês acha que o aborto da menina resolveu algo, ajudou em algo a vida semi-desfeita já nos seus parcos dez anos? A discussão nem deve ser o aborto, neste caso uma proteção indispensável à vida da menina.
A questão é: o tio e o avô estão presos (crime hediondo, sem qualquer direito à liberdade antecipada)? Houve um julgamento para apurar as responsabilidades individuais dos familiares como um todo? O país garantirá a esta pequena vítima um apoio psicossocial, um tratamento ou escola decentes, incluindo, quem sabe adoção por uma boa família?
Se os que se aproveitam da tragédia pessoal da menina para defender ou atacar o aborto, soubessem da dimensão social do abuso de menores (em todos as classes económicas) eu creio que exigiriam isto sim uma mudança radical no trato deste tipo de crime pela Justiça Brasileira.



Nenhum comentário:

Postar um comentário