domingo, 18 de outubro de 2020

Medicina Desumana e os vícios incuráveis da Filosofia

"A Criança é o Pai do Homem" (Machado de Assis)

«É preciso deixar amadurecer a infância dentro de cada criança» (JJ Rousseau) 

Aprovou-se há poucos dias na Holanda a nova lei de eutanásia que libera o "assassinato piedoso" para menores com idade entre 1 ano e 12 anos de vida, por solicitação dos pais. Bebês com menos de 1 ano podiam ser sacrificados desde há algum tempo e maiores de 12 anos tem sido mortos pelos holandeses há outro tanto. Quem mata? Os médicos, cumprindo tarefa delegada pelo Estado, seguindo solicitação dos pais. Na França, há bem pouco, foi liberado o assassinato de bebês em situações de "estresse psicossocial" materno. 

Não vou me estender na questão do infanticídio, um hábito que remonta aos nossos ancestrais mais primitivos. Abandonados nas estradas para serem devorados pelas feras, atirados de abismos, selecionados para viver ou morrer pelo Conselho dos Anciãos, de acordo com certas características pessoais em Esparta, ou pelos pais em Atenas. Isto com apoio dos filósofos, como em relação aos velhos, doentes crônicos e doentes mentais. 

A palavra "infantil" significa imaturo, tendo a mesma origem da palavra "enfermidade".  E os pequenos, especialmente os "enfermos inúteis" sofreram toda a sorte de abusos, maus-tratos, exclusão e assassinatos. Apenas no fim do século XIX, seguindo o caminho de Rousseau, passou-se a ver a criança como o primórdio da pessoa madura, criando-se o interesse pela proteção aos menores. 

Somente décadas após, criou-se um atendimento médico específico para as crianças e, lentamente, ao longo do século XX, surgiu a proteção aos seus melhores interesses (bem depois das leis de proteção aos animais, diga-se de passagem). Apesar das leis de proteção aos menores, ainda assim, na profissão de Pediatra, atendi a crianças espancadas, violadas sexualmente, humilhadas por abuso psicológico. Por seus familiares, cuidadores, ou por qualquer um. Não é para menos que na língua Anufo usada por alguns povos Africanos, o Pediatra é chamado de "Nbataam-Kandabri", que significa o "Protetor das Crianças".

A Medicina, de algum modo, participou desta história, ou como assassina a pedido dos pais e do Estado, ou como protetora da criança. Deve-se enfatizar que nunca como nas últimas 6 décadas tantas terapêuticas foram  desenvolvidas para tratar a criança doente e aliviar suas dores, não a abandonando no caminho. 

Há quem imagine que criança não tenha doença grave. Pois não é assim. Há crianças que nascem enfermas por doenças congênitas, outras padecem de enfermidades crônicas adquiridas, além dos acidentes graves como as queimaduras. E há os transplantados a exigir imensa atenção para sempre. 

São pediatras que as atendem, são cientistas que desenvolvem medicamentos para curá-las ou tratá-las e mitigar suas dores. Alguns governos com dignidade, como o do Brasil e da Europa, fornecem medicamentos de última geração para melhorar sua qualidade de vida, incluindo os chamados "medicamentos órfãos". 

Estas crianças portadoras de doenças crônicas necessitam dos melhores cuidados paliativos por toda a sua vida. Eu tive a honra de participar de algumas destas situações, envolvendo equipes médicas devotadas, famílias amorosas, heróicas e isto me ensinou o que é o amor verdadeiro, só percebido e expressado nestas situações limites. 

Contudo, repito, este esforço da Medicina, que podemos considerar como um novo paradigma civilizatório em relação à criança, certamente o mais elevado, tem menos de 60 anos!

A Medicina embrenhou-se nos últimos tempos com a Filosofia para gerir e desenvolver a Ética Médica. Isto tem possibilitado algum avanço na relação entre médico e doente, buscando valorizar princípios éticos, morais, humanitários. Ocorre, porém, que a filosofia tem seus vícios. Baseia-se em uma reflexão sistemática de referências bibliográficas e, não raramente, confunde realidade com texto, transformando texto em verdade, sem a  capacidade de fazer uma clara observação dos fatos e dados para chegar aí sim a conclusões adequadas. A Filosofia tem sido a mãe de ideologias políticas, que usam o discurso filosófico para gerir comunidades da pior forma com desastrosos resultados, em nome de algum Sistema a prometer o Novo Mundo. 

Esta fusão da Medicina com doutrinas filosóficas, buscando solucionar dilemas da vida humana com axiomas e deduções, por exemplo baseados no princípio da Autonomia, a liberdade individual de escolha, pode ser lamentável. 

A liberação de assassinar, com ou sem piedade, é um ponto sem retorno para o assassinado, para o profissional que assassina, para o sistema jurídico de um país.  O caminho atual estava sendo o da tentativa de eliminar guerras, genocídio, pena de morte, resquícios de um mundo bárbaro, embora tão próximo.

Como gosto de Filosofias, mesmo sendo intrinsicamente desconfiado dos seus métodos e resultados, uso aqui uma reflexão de Jean Baudrillard no excelente livro A Transparência do Mal, que analisa a Sociedade ocidental Pós-Moderna. Baudrillard diz que o Ocidente tem buscado destruir seus conceitos fundadores, como o Bem, o Justo e o Belo, através da Generalização que dilui estes conceitos. Se dizemos que qualquer coisa, uma sanita exposta ao público por exemplo, pode ser Arte, o conceito de Arte deixa de existir. O mesmo em relação ao Bem e ao Justo (tudo vale). Sobre a Arte, ele assim  resume: "uma Arte que desconhece o conceito de Beleza merece um Mercado que desconhece o conceito de Ética".

Em nome da liberdade de escolha individual, a valorização super-dimensionada da Autonomia relativiza os valores humanos conquistados pela civilização, destruindo o que a cultura Humanitária de melhor qualidade tem produzido com tanto esforço.

E aí está a questão: se assassinar passou também a ser tratamento, ao invés de se investir sempre mais na cura ou nos cuidados paliativos, então está decretada também a Morte da Medicina.  Como predizia o Dr. Julius Moses, morto num campo de concentração: O médico torna-se o Carrasco. 

E bem mais fácil para as finanças e o conforto do Estado e de algumas famílias.


 

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