quinta-feira, 10 de julho de 2025

A ilusão das Ideologias e o universalismo da Ciência

Eu dei-me ao trabalho de traduzir um texto do livro SCIENTIFIC INTEGRITY AND RESEARCH ETHICS - An Approach to the Ethos of Science, relativamente à necessidade de ser íntegro na Pesquisa e na Divulgação dos dados científicos, e do Conhecimento. Toda vez que eu leio na media (digital, escrita ou televisiva) que "os cientistas descobriram que...", sinceramente eu tremo. Os absurdos divulgados pelos meios de comunicação em nome da Ciência, e popularizados nas conversas de "vizinhas, ou terapeutas" e nos reels de influencers, são altamente destrutivos, incluindo o abandono à vacinação, a liberação do uso de drogas (estupefacientes), uso de dietas absurdas, medicamentos "naturais" e suplementos alimentares, hormônios, hemeopatia, práticas obstétricas irresponsáveis, etc., etc., etc.,  em nome de posturas ideológicas, sejam naturistas, libertárias, democráticas, religiosas, políticas, entre outras. O texto abaixo envolve um caso histórico em que uma ideologia levou à Fome e à Morte na URSS. Aliás, o mesmo que se vê relativamente às ciências da Economia e Sociais, em países latino-americanos, nestes dias.
Eis o texto:


"Universalismo na Ciência

Na Ciência, Universalismo significa que a Ciência é a mesma onde quer que vamos. Não existem verdades locais, mas sim um mundo natural que só pode ser compreendido ao considerarmos a suas leis como universais. Existem verdades que podem ser descobertas independentemente das nossas crenças particulares, e é o projeto da ciência descobri-las independentemente dos nossos preconceitos locais. Os objetos da ciência não são afetados pela cultura ou pela história. As instituições científicas devem, portanto, estar engajadas no mesmo trabalho em todos os lugares e aceitar como algo natural que, onde quer que vamos no mundo, outros cientistas buscam as mesmas verdades subjacentes de maneiras semelhantes, e que os resultados desses estudos nos levarão a todos, conjunta ou separadamente, aos mesmos fatos básicos sobre o Universo. 

A falha em seguir essa noção básica pode ser desastrosa. Um exemplo claro disso é o Lysenkoísmo, a “ciência soviética” fracassada baseada no Lamarckismo, o qual mais se aproximava da ortodoxia comunista, mas cuja busca levou à morte de talvez centenas de milhares de pessoas devido à fome na União Soviética estalinista.

A teoria de Darwin da seleção natural não se conformava às noções comunistas de perfetibilidade e cooperação. A noção de que as populações se fortalecem por meio da competição e da eliminação lenta das menos aptas por forças naturais, da competição por recursos escassos e do progresso lento e hesitante da evolução contraria muitos dos preceitos do Marxismo, expressos em vários escritos que baseiam as políticas comunistas. A evolução darwiniana, por meio da seleção natural, não pretende ter implicações políticas, mas sim descrever o funcionamento da Natureza. Contudo, devido ao que os soviéticos viam como implicações imperialistas e anticomunistas, potencialmente perigosas para a revolução em curso, uma visão diferente da natureza foi adotada como ortodoxia estatal na União Soviética, com consequências desastrosas.

Trofim Lysenko adotou a teoria da evolução de Jean-Bapstiste Lamarck por meio da transmissão não de características genéticas, mas de características adotadas. Em outras palavras, a evolução poderia ser direcionada pelo aperfeiçoamento dos indivíduos e das suas características, em vez de depender da natureza para eliminar características genéticas desadaptadas diante de um ambiente em mudança. Essa teoria se adequava melhor à noção Hegeliana de Materialismo Dialético que sustenta a teoria comunista e, portanto, foi considerada correta, independentemente do que a observação realmente confirmasse sobre o darwinismo.

A teoria, no entanto, estava lamentavelmente equivocada. As visões lamarckistas sobre mudanças nas espécies ao longo do tempo não são corroboradas pela observação, enquanto a teoria darwiniana da seleção natural, continuou a ser confirmada pela observação por mais de cem anos. Mas devido à maior afinidade entre Lamarck e a visão soviética da perfetibilidade dos humanos e da necessidade de cooperação em vez de competição na sociedade comunista, Lysenko ascendeu dentro do aparato do Partido Comunista na URSS e a teoria genética da herança foi vista como subversiva.

As ideias de Lysenko sobre a manipulação de espécies forçando mudanças nos seus fenótipos foram adotadas contra todas as evidências em contrário devido à Ideologia. Esta era a “ciência soviética”, em oposição à “ciência ocidental”, decadente e capitalista. Lysenko foi apoiado por Stalin devido à sua ideologia, mesmo diante de repetidos fracassos em campo para aplicar com sucesso as suas visões às plantações. 

Milhares de geneticistas que se opuseram à ciência de Lysenko foram presos e até mesmo executados, e a Academia Lenin de Ciências Agrícolas decretou que apenas o lysenkoísmo seria ensinado e não a teoria da herança genética. O resultado líquido foi que a produtividade agrícola na URSS caiu devido às tentativas de aplicar as teorias de Lysenko, mesmo em uma época de escassez de alimentos e quebras generalizadas de safra. Isso pode muito bem ter contribuído para o flagelo da fome que afligiu a URSS sob Stalin. Além disso, a ciência feita na União Soviética sofreu um retrocesso de décadas.

Não existe ciência "soviética". As verdades universais reveladas pela descoberta da herança genética e pela contínua confirmação da teoria darwiniana da seleção natural como mecanismo de mudança e especiação não dependem de condições locais, muito menos de opiniões políticas. A noção de que uma teoria científica deva ser priorizada devido à sua relação mais próxima com uma ideologia política favorecida vai diretamente contra o universalismo da ciência. Adotar o lysenkoísmo prejudicou a sociedade e atrasou a ciência soviética. Os cientistas soviéticos que corajosamente se opuseram a ele estavam fazendo justiça ao valor maior do universalismo na ciência e, literalmente, arriscaram as suas vidas em defesa de princípios científicos sólidos. Universalismo significa que não podemos escolher entre hipóteses ou teorias científicas conflituantes baseados em meios “democráticos (opiniões maioritárias)” ou ideologias políticas dominantes. Em vez disso, todos os pesquisadores que trabalham numa área, independentemente de onde estejam, dos seus pontos de vista, preferências ou crenças, devem aceitar as evidências como elas chegam e segui-las para onde elas nos levarem. As leis da natureza são as mesmas em todos os lugares.

Isso significa que, mesmo quando alguma observação científica leva a uma hipótese que não se adequa às nossas visões atuais, seja sobre ciência ou sociedade, somos obrigados a testar a hipótese em outro lugar, buscar confirmação ou refutação e, se a confirmação persistir, revisar as nossas visões. Posições individuais, locais, nacionais ou ideológicas não podem influenciar a nossa busca pela verdade. Quando uma verdade se torna muito "inconveniente" para um ponto de vista ideológico específico, ou mesmo uma hipótese, ou teoria científica previamente acreditada que se torna falsificada diante de novas evidências, devemos adotá-la mesmo assim e mudar o nosso ponto de vista.

A sociedade será prejudicada de outra forma. Seja por algum dano físico, como fome ou mudança climática, a falha em alterar os nossos comportamentos devido a crenças ou ideologias locais, mesmo diante de evidências conflitantes, prejudica a sociedade. Em primeiro lugar, coloca a ideologia acima dos fatos, acima da observação. A sociedade confia a busca pelas leis da natureza aos cientistas e tem o direito de conhecer os frutos dessa busca, independentemente de política ou crença."

In: David Koepsell. SCIENTIFIC INTEGRITY AND RESEARCH ETHICS - An Approach to the Ethos of Science. 2015; chapter 8. ISBN 978-3-319-51276-1 ISBN 978-3-319-51277-8 (eBook) DOI 10.1007/978-3-319-51277-8



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