Eu e os meus "causos", como diz o gaúcho. São algumas das minhas experiências de vida.
Boa parte da minha vida adulta, morei no Bom Fim, o “Bonfa”, bairro judeu de Porto Alegre, um tanto boêmio e intelectual, com seu imenso parque, a Redenção. Cruzava diariamente com a dona Sarah, o seu Jacó, o músico tal, o artista plástico X, enfim...Ali vivi experiências difíceis como cada ser humano viveu, e também tive vivências maravilhosas e enriquecedoras.
Ali fiz minhas teses de mestrado e doutorado, criei meus bichos amados, tive amores e fui amado.
Enfim, um bairro inesquecível, com piscinas, gente a andar pela rua, agito, passeatas, bons dias, olás, cafés e restaurantes...vizinhos e vizinhas tantos que chegavam a ser passantes desconhecidos. Uma das vizinhas, dona Esther, que morava atrás de nosso apartamento na Fernandes Vieira, um dia, quando eu cheguei do trabalho, estava sentada no banco à frente do edifício, e me olhou sorridente e curiosa e perguntou, com seu sotaque que eu diria de iídiche:
- o senhor é alemão, não?
Eu a olhei, curioso, e lhe disse:
- Dona Esther, eu sou uma mescla de italianos da Lombardia que na verdade eram em parte austríacos, e de portugueses. Alemães, alemães não somos.
Ela sorriu, seu rosto suave, e me disse:
- Ah! austríacos...eu "era" alemã. Nasci e passei boa parte da minha vida na Alemanha; lá viveram meus familiares por muitas gerações. Até que houve a guerra...
E dona Esther puxou um pouquinho a manga da blusa e mostrou-me o frágil pulso direito onde havia um número escrito:
-Eu fui prisioneira de Auschwitz.
Uma revelação que me deixou perplexo, ao ver a delicadeza desta vizinha alemã a compartilhar comigo, seu vizinho de porta, as memórias dolorosas que ela guardava e revivia. E a vergonha do mundo inteiro.
Por falar em vergonha do mundo, numa outra vez foi a vizinha do andar de cima. Uma jovem mulher, muito bonita, divorciada, que vivia com suas duas filhas, também lindíssimas. Eram muito simpáticas e eu acompanhava, mesmo sem querer, o crescimento da mais jovem, que já tinha um namorado, todo atlético e bonitão. À medida que amadurece, a gente fica preocupado com o futuro da garotada nestes tempos caóticos, em que os valores da civilização vão sendo consumidos por ideologias selvagens. E ficamos torcendo para que estas joias lindas não percam o rumo, e não se destruam nelas os bens mais preciosos que a vida pode oferecer. Pois bem, um dia, a mãe desta família pediu-me algum tempo para conversarmos. Concordei.
Nos reunimos em sua casa e ela se abriu.
- Jorge, queria falar contigo...como médico.
-Por favor, fale comigo como médico e amigo.
-Pois bem, minha menina, a mais jovem, está grávida.
Quase sorri pela bela revelação, mas evitei. Ela continuou:
-Meu ex-marido é um homem rígido, um tanto grosseiro, e por isto nos separamos.
-E?
- Ele é deprimido crônico, usa medicação, faz tratamento.
-Sim...
- Ele não vai suportar a notícia de que nossa filha está grávida. O rapaz é um irresponsável, dependente dos pais e nem quer saber. Sumiu. Meu ex-marido pode se matar ou fazer uma loucura. Eu queria saber se tu podes indicar algum colega teu para fazer o aborto...
Algo subiu à minha cabeça e eu fiquei, digamos, muito indignado, por ser colocado numa posição decisória quanto à destruição de uma vida humana, por causa de um namorado "vagabundo" e de um pai "violento e deprimido". Mas como tenho anos de traquejo em ser o que sou independente do que os outros esperam, independente da “persona” que os demais impingem a um "médico liberal", disse-lhe com carinho:
- Amiga, eu sou um Pediatra, que significa ser o “protetor das crianças”. Eu não faria algo assim com sua filha, nem com o bebê que pede para vir ao mundo. Independente de qualquer questão religiosa, como médico que ama as crianças, e adolescentes como tua filha, eu não sou a pessoa que pensas que sou, que procuras, eu não posso te ajudar. Se pudesse te dizer algo, é: assumam juntas este bebê, sejam apoio umas a outras. E dane-se o rapaz irresponsável. Quanto ao teu ex-marido, que ele vá mesmo se tratar e não incomode neste momento tão especial de vocês como família. Que busque um psiquiatra melhor. Se quer se suicidar, uma pena, mas ele é adulto. O bebê que vem é o mais frágil.
Ela sorriu, triste e um tanto surpresa, e me disse apenas:
-Vamos pensar. Mas obrigado.
Saí dali sentindo-me afetado, quase um culpado por complicar ainda mais a situação daquele grupo de pessoas. Um insensível, rígido. Mas refleti para mim mesmo: é o que eu sinto em profundidade; esta é a minha palavra verdadeira e eu seria um farsante se fizesse diferente.
O tempo passou e houve um silêncio na nossa relação de vizinhança. Até que um dia vi a linda filha curtindo sua barriguinha ao sol da manhã. Quase chorei, mas me mostrei impassível e desapegado:
- Bom dia, eu disse.
E a garota, sorrindo, respondeu me olhando nos olhos:
- Bom dia.
Vários meses depois, fiquei sabendo do nascimento e conheci aquela bebê tão linda como a avó e a jovem mãe, digamos também, com uns bons traços do belo avô.
A mãe um dia chamou-me para outra conversa de vizinhos:
-Jorge, eu queria te agradecer. Não sabes o bem que nos fizeste. Tomei coragem e falei com o ex-marido. Fui forte, firme, empoderada. Ele inicialmente ficou furioso, mas dois ou três dias depois veio visitar-nos e passou a mão sobre o ventre da filha.
Jorge, o nascimento da nossa neta foi a maior bênção para nós todos...e especialmente para o meu ex-marido. Ele é apaixonado pela neta, como o é pelas nossas filhas. A neta é a alegria da vida dele.
O poeta aqui tremeu nas bases e, emocionado, respondeu:
-Que alegria imensa saber disso, ter feito parte da história de vocês.
Soube que o bonitão, irresponsável e vagabundo, voltou a buscar a belíssima jovem mamãe, mas ela nem quis saber. Havia coisas melhores neste mundo, incluindo algum pretendente trabalhador e amoroso. E o amor de sua família. Ela já trabalhava e cuidava da sua filha. Assim é a vida, rapazes. Hesitou, perdeu a joia!
Estas situações fazem a vida de um médico valer a pena. E não deixar que a profissão torne-se terreno do crime, mais uma vergonha para este mundo triste, cada vez mais medíocre.