segunda-feira, 3 de junho de 2013

A Filha Sagrada do Taxista


Vivendo e aprendendo, ou melhor, ouvindo e aprendendo.
Hoje, o taxista que me transportou ao trabalho foi um homem negro, elegante e simpático. Nos cumprimentamos e o taxi começou a me levar. Eu estava relaxado e feliz por alguns dias de descanso em Montevidéu, e nem sentia o cansaço de algumas horas de viagem, sem direito a um intervalo em casa...ao batente, direto. Resolvi lembrar das coisas que aconteceram nestes dias, dos passeios, do balé no teatro Sodre. Ia metabolizar as memórias da viagem, mas o companheiro taxista tinha outras ideias: queria conversar.
-O senhor é médico, não?
-Sim.
-Esta garotada é complicada, me disse.
-É? -respondi sem entender o que vinha por aí.
-Minha filha, de 20 anos...guria trabalhadora...estava empregada há algum tempo numa empresa, mas resolveu sair e montar seu próprio negócio...
-Que ótimo...
-Ótimo, sim...mas a guria, por ter negócio próprio, resolveu que poderia gastar em viagem, roupas de grife, carro novo...resultado: se endividou. Agora, estou tentando achar uma forma de financiar a dívida.
-Bah! que chato. E no fim, tu és quem vai ter que resolver o problema.
-É isto...
Creio que, sentindo-se apoiado pelo bom ouvinte, ele foi fundo no drama que o incomodava:
-É que ela está toda envolvida com esta Igreja Universal, doutor...
Senti que a coisa era pesada. Eu, como detesto esta igreja, tive que controlar a língua. Fui diplomático:
-Ah! ela tem uma fé...
-É bem mais complicado que isto...ela conheceu o marido num culto, se apaixonaram, casaram. E ela ficou fanática, porque ele é fanático.
-Hmmm...
-E estes pastores são uns picaretas, sabe? O negócio todo envolve picaretagem.
Eu fiquei surpreso com a colocação do taxista:
-Como assim?
-Sim...picaretagem.  Minha filha comprou o carro numa revenda de carros de segunda mão que pertence aos pastores. São carros que foram doados por fiéis da igreja.  Os picaretas arrumam o automóvel, quando necessário, e vendem a doação por um preço abaixo do mercado.
-Meu deus...eu disse.
-Neste caso, além de venderem um carro destes para minha filha, não entregaram.
Mas ela não quis brigar por isto, porque o negócio era do pastor...e continua na Igreja.
Ao ouvir isto, eu fiquei pasmo.
 -E o marido da tua filha, não fez nada? perguntei.
-Não, ele é fanático, lhe disse...É destes bem contra gays e racistas...
-Mas a tua filha, por acaso, não é negra?
-Ela e ele são negros...mas são racistas por causa "daquela maldição de Deus contra a África"...
Não pude me controlar e ri. Ele riu também.
-O cara é um idiota, doutor. Num dia destes, numa comédia da TV, um sujeito fez papel de pastor que, depois se descobre, é gay...O marido da minha filha saiu gritando: isto é uma abominação! isto é uma blasfêmia contra deus! Doutor, o marido da minha filha é um idiota! disse o taxista, rindo. E eles ficam sonhando com carrão grande, com viagem para a Europa como fazem os pastores. O marido da minha filha usa relógio que imita ouro para parecer rico como o pastor.
E eu, maldosamente, pensei: além de idiota, o tal genro é brega...o que uma gente destas faria na Europa? Mas, ao invés de dizer uma coisa destas, preferi ponderar:
-E porque não aconselhas tua filha a ir a uma outra religião? Uma evangélica séria, uma Luterana, por exemplo...
E ele me disse, claramente:
-O interesse dela não é deus, não é Jesus. É grana.
Continuou meu novo amigo taxista, refletindo e me dando alguma luz psicanalítica sobre o que Jung chamava de “carma familiar“:
-Eu tenho orgulho da minha filha, porque é uma menina trabalhadora e nunca usou drogas, enquanto eu incomodei um monte minha família porque me drogava. Tenho orgulho dela neste aspecto. Mas queria que ela aprendesse a ter uma visão mais humana sobre a vida e as pessoas. Queria que minha filha se abrisse para alguma evolução (ele usou esta palavra).
Chegávamos ao Hospital. Enquanto descia do taxi, ele me disse:
-Obrigado, doutor, pelo ouvido amigo.
Eu sorri e disse:
-Eu é que agradeço.
Fiquei tocado com o drama enorme da família do taxista, envolvida num esquema de lavagem cerebral e corrupção ideológica, mau caráter explícito, por falta de algum refinamento cultural. Eu diria, por falta de alguma espiritualidade decente. Apesar da lucidez do torturado amigo.




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