sábado, 12 de março de 2022

A FACE BANAL DO MAL

Confesso que li quase toda a obra editada da Hannah Arendt (incluindo algumas publicadas post mortem). Li, reli e tive durante anos seus estudos como livros de cabeceira. Além dos meus outros ídolos. 

Há muito tempo estudei com afinco o seu "Eichmann em Jerusalém - relatório sobre a Banalidade  do Mal" editado pela Gallimartd. O livro narra o Julgamento em Israel daquele que foi um SS-tenente-coronel da Alemanha Nazista, e um dos principais organizadores do Holocausto. Ele foi designado por Reinhard Heydrich para comandar as deportações dos judeus para os guetos e depois para os campos de extermínio do leste Europeu. 

O livro da Arendt foi criticado inclusive pelas vítimas e suas famílias por refletir sobre o personagem Eichmann, criado ao longo dos anos em que ele esteve fugitivo na Argentina, protegido pela comunidade de nazistas daquele país latinoamericano. Comportava-se como um discreto marido, pai de família, trabalhador honesto. Pois o Mossad localizou-o e o raptou numa operação genial, levando-o para Jerusalém, onde foi julgado. 

Durante todo o julgamento parecia ser "o mais honesto, o melhor dos homens" e dizia, como mote de defesa: "eu só cumpri ordens". Este que assassinara cruelmente milhões de pessoas, que as comprimia em valas e dava ordem presencial de que as mulheres, crianças, bebês, homens, jovens e velhos, fossem baleados pelas hordas selvagens dos soldados nazistas. Ou nos fornos crematórios.

O livro de Arendt é impressionante nas narrações dos crimes imperdoáveis que ocorreram no leste Europeu, a mando desta criatura.

Como pode este monstro desumano ser o burocrata que apenas cumprira ordens? Pessoalmente, para mim, esta é a acurada visão de Arendt, uma de suas grandes "sacadas" para iluminar a Filosofia Política: os monstros são especialistas em não parecer sê-lo. 

Nos filmes americanos, os monstros cruéis são óbvios: caras horríveis, gritos, feiúra física etc. Mas os verdadeiros monstros falam sorrindo, eventualmente tem uma bela figura, são mestres da sedução mentirosa, mesmo citando a Bíblia (como o Papa Gregório, criador da Primeira Cruzada e do primeiro regime totalitário europeu, que dizimou os Cátaros no Sul da França). E cumprem ordens, dos seus superiores ou de algum Deus. Arendt nos auxiliou a ver a sociopatia assassina na sua cara mais real: o cumprimento de deveres burocráticos. 

Certamente, um das áreas de atuação de sociopatas em todos os países é o campo da Política, onde a mentira deve ser dita sem qualquer tremor na voz, onde os planos vergonhosos devem ser adocicados com uma bela desculpa ideológica. Esta Banalidade do Mal encanta ao público. 

Eventualmente estes sociopatas declaram abertamente seus planos, explorando no seu público os preconceitos sórdidos das massas, as recônditas mazelas humanas e seus interesses, os desejos escusos dos grupos de poder. Hitler dizia claramente o que iria fazer, Stalin idem. E mesmo assim, e talvez por isto mesmo, enfeitiçavam multidões:"pela Alemanha! pela URSS! Pela Nova Ordem Mundial! Têm  mesmo que matar, destruir, fazer sumir deste mundo!". Além dos citados, alguns pequenos psicopatas, líderes e povos de países irrelevantes associaram-se aos criminosos sonhando com os dentes e alianças de ouro, o espólio roubado das multidões de vítimas. 

Mas os monstros em geral não parecem monstruosos, são os pais da Pátria e os minúsculos obreiros da  massa de manobra, cumpridores de ordens. O mundo de modo geral, com raras exceções, só reconhece sua monstruosidade retrospectivamente. 

Mesmo a mídia, dependendo do momento, expõe seus discursos (de maneira geral enfáticos e bem produzidos) e sempre haverá "âncoras" de jornais, comentadores, relativizando os motivos das condutas "aparentemente" bárbaras, ao usar círculos de ideias que parecem cultas mas que são a maquilagem da hediondez. Artistas populares, ingênuos ou espertos, fazem propaganda de suas políticas.

O mundo reconhece o que eles são, somente mais tarde: os povos que conseguiram dividir, através de clima ideológico conflituoso. Expoliando nações, produzindo miséria. Ou criando guerras contra povos mais fracos, invadindo sem qualquer respeito outros países, destruindo tudo por onde passam. Incluindo a Ética e a Lei. 

Facilmente, ao matarem mulheres, homens, velhos e crianças, sorriem, explicam à imprensa ou aos juízes que eles apenas cumprem ordens, que resgatam valores injustiçados. Realmente, o Mal, incluindo o que podemos chamar em termos de consciência humana o Mal absoluto, tem a cara sorridente e a justificativa banal de um criminoso psicopata, que podia ser o seu vizinho ou colega de turma.

Arendt revelou-nos isto com sua aguda percepção para nos tornar menos ingênuos. "Vejam: ele é o mais banal dos homens e é o monstro devorador de vidas".  As ideologias são os instrumentos destes crápulas para confundir e perpetrar os planos criminosos. Frequentemente em nome do "Novo Mundo Possível". 

Pois ontem revi o filme Operação Final (Operation Finale, com Ben Kingsley, Oscar Isaac, e excelente elenco dirigido por Chris Weitz) , sobre a captura do Eichmann em Buenos Aires pelos membros do Mossad mesmo com o forte apoio da comunidade Nazi argentina. 

E recomendo o filme fazendo um desafio: há um só momento em que, na película, Eichmann (Kingsley) mostra sua cara, despe a máscara e diz o quê ele é. Gabando-se, deleitando-se com seu perdido poder destruidor. 

Na vida real, em que não ocultava seu verdadeiro nome, nas festinhas com seu grupo e mesmo com outras pessoas, sabe-se que o monstro dos campos de concentração gostava de repetir "pena que não matei a todos". 

Por outro lado - não outro lado, porque são todos a mesma coisa- Lenin com sua política blochevique, causando o fim das indústrias russas e desestruturando a Economia daquele país levou à Primeira Grande Fome, na qual morreram inumeráveis russos. E Stalin, outro psicopata, causou a Grande Fome na Ucrânia, lúcido e cruel, discursando e produzindo milhões de mortos.  Com apoio do Brecht, Sartre, vários intelectuais franceses, e artistas como o Picasso (da pombinha da paz).

Talvez tenhamos aprendido nestes dias difíceis de hoje a ver claramente a realidade, graças, entre outros, a pessoas com Hannah Arendt e Erich Fromm.

Referências: 

-EICHMANN À JÉRUSALEM : RAPPORT SUR LA BANALITÉ DU MAL. Hannah Arendt, Gallimard.

-AS ORIGENS DO TOTALITARISMO. Hannah Arendt.

- ANATOMIA DA DESTRUTIVIDADE HUMANA. Erich Fromm.






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