quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Como um dia qualquer na Covilhã


Paulo despertou de sonhos confusos: a casa da infância, os pais, amigos sumidos nestes 70 anos. Lívia, a amada, pedindo para dançar e ele negando. Sonhos.
Lívia se fora. Ele ficou. Sozinho, dor nos joelhos, nas ancas, visão turva, audição falha, pele manchada, com nervuras, velha casca de sobreiro. Ao levantar-se, lembrou que era Natal. Dia qualquer duma vida oca.  Barbeando-se, tonteou, mareado. E o inesperado aconteceu.
Surgiu-lhe um anjo.  
(Expliquemos. Não era anjo de Igreja, ou Super-Anjo Americano. Nem palpável era, ou alado. Era a voz que Paulo reconhecia de menino, murmurando debilmente entre os ruídos da máquina de pensar. Nos silêncios, Paulo ligava rádio para que outro som ocultasse a voz que agora ouvia claramente).
O Anjo disse
- Sim, sou eu.
E convidou
-Veste-te. Vamos à rua, que é Natal.
Paulo obedeceu.

Já na Alameda Europa, Paulo viu a Serra da Estrela nevada, como se da vez primeira.
Disse-lhe o Anjo
-Tens razão ao dizer que o Natal é um dia comum.  Como em qualquer dia, o sol cruzará o horizonte, reinaugurando a vida, e das fontes do Covão d’Ametade brotarão água e poesia. Sem dar-te conta.
Paulo pensou: estou louco! Não havendo como fugir ao Anjo, respirava com dificuldade.
- Perco o fôlego! O coração dispara! É minha morte, Anjo?
-Isto não interessa, respondeu o visitante.

Devagar, o sopro da respiração voltou-lhe como voltara no dia primordial em que, aos gritos, Paulo nasceu. Apercebeu-se, igualmente, do coração a bater ritmado dentro dele e para ele, como uma prenda diária. Sentou-se num banco, olhando as montanhas, como o menino que fora, a recitar poemas.
Prosseguiu o Anjo
-Pela Alameda Europa, mil vezes respirarás sem dar-te conta e, sem dar-te conta serás mais sábio e mais profundo. Na Avenida Anil verás a Terra transformar-se a cada giro que ela gira desde que o mundo é mundo. Sem dar-se conta, na Gardunha ressurgirão flores que, em silêncio, darão frutos.
O Anjo, ou Paulo, continuou
- Crianças darão seus primeiros passos nas casas do Pelourinho e amores produzirão beijos, abraços e (por que não?) alguns espinhos.

A Serra transmutara-se em cenário 3-D expressionista: pontos brilhantes verdes, róseos e, em tons pastéis, as pedras e as casas. No alto, um azul celeste a fundir-se com violetas. Pelas calçadas, velhos conhecidos seguiam sua marcha urbana com netos, cães, sonhos, ocultos anjos e demônios.
Paulo, comovido, balbuciou
- Sem que nos demos conta, triunfará a vida, a Silenciosa, a Desapercebida, gerando mais vida em mutação, com átomos que não vemos e cordas e dimensões que nós desconhecemos, em plena Covilhã.

O Anjo então concluiu
- Nisto repousa o mistério deste dia de Natal, como de qualquer outro: os mais preciosos bens que em ti vivem, vivem por ti sem que nem te dês conta, de tão perenes, humildes e comuns.

Paulo, assustado, perguntou ainda ao Anjo
- Morrerei, então, agora?

O visitante respondeu-lhe com ar maroto, sorrindo, ao ir-se:
- “Ó Paulo, deixa de ser trágico! Desfruta Hoje, o paraíso”.




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